sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Conversa de interiores


“Sendo quem é não me surpreendo ao vê-lo passar com aquela mulher que parece ser sua mãe,” pensava dona Doca ao ver um de seus vizinhos caminhar acompanhado na outra extremidade da calçada. O “trintagenário” a olhava com cara de cachorro no cio, acenava com um sorriso provocativo e seguia com a sua acompanhante. Logo em seguida, apareceu Seu João na esquina repleto de coleiras em suas mãos, guiando cerca de cinco cachorros para o passeio matinal. E logo a cabeça de dona Doca se pôs a refletir: “Lá vem esse senhor diariamente distribuir fezes de cachorro pela vizinhança, como se a merda fedorenta desses cães adubasse o asfalto. Incrível a falta de bom senso desse velho gagá. Ajuda a todos caminhando com os cães alheios. O bairro inteiro o tem em consideração pelo fato de prestar esses pequenos favores, mas já que ele tem boa vontade deveria fazer o serviço completo: parar toda vez que um defecasse para recolher a bosta”.

Seu João dirigiu-se para perto da casa de dona Doca, olhou para o alto e disse:

- Venha passear um pouco e sair da mesmice dessa varanda, a senhora fica com uma vista nos seus livros e a outra na calçada. Tem de sair um pouco desse ângulo da vida, para ver outros. Todos os dias faço um caminho diferente com os cães. Acabo passando por situações inusitadas e interessantes. A senhora deveria vivenciar outras paisagens de vez em quando.

- Não preciso sair da minha varanda para viver coisas novas, os livros me saciam do novo. – respondeu dona Doca.

- Mas as palavras escritas são insuficientes para lhe dar vida, ora bolas. A vida é construída no contato com outras pessoas, animais...

- Principalmente, quando eu caminho pela rua e entro em contato com as fezes dos cães que o senhor distribui pelas calçadas, é um contato tão intenso e maravilhoso com a vida. Realmente, o senhor sabe garimpar vida no asfalto das praças...

- Hoje tem gente azeda na varanda, chega estala a minha boca com o amargor que brota das suas palavras.

- Hum... O senhor está poético: amargor que brota das minhas palavras (riso irônico). Se alguma pessoa não se ofendesse com as verdades que eu tenho a dizer, não se dirigiria a minha varanda, pois de mim só sai palavras autênticas, não vim ao mundo para agradar os outros com a falsidade que transborda dos que caminham pelas calçadas, estou aqui para dizer o que observo: no caso do senhor, distribuir fezes de cachorro pela rua fere todos os princípios de civilidade.  

Seguiu Seu João cabisbaixo com os cães. No dia seguinte, lá estava ele com os sacos de plástico de supermercado, catando as fezes dos cães. Dona Doca ao ver a cena, comoveu-se, e mesmo assim, pôs-se a ler o livro que trazia às mãos, fingindo não se dar conta da mudança de postura do vizinho. Quando ele chegou bem perto da varanda, ela amoleceu a sua dureza característica que teimava em persistir traduzida pelo silêncio e fez o comentário, sem transparecer nenhum traço de emoção no rosto:

- Parabéns, seu João.

Ele a olhou, acenou aliviado e seguiu seu rumo. No mesmo instante, duas moças andando lentamente conversavam descontraídas e uma delas dizia:

- Só tive dois amores na vida e os vivi intensamente, quando acabaram as dores foram piores do que se tivesse levado uma surra e me tivessem quebrado todos os dentes, no mais foram paixões que pipocaram aqui e acolá, assim como a pipoca estoura nos iluminando com o seu sabor, a digerimos facilmente e rapidamente...

O restante da conversa não pôde ser ouvido, porque as moças se afastaram. Dona Doca então pensou: “essa seria uma conversa da qual gostaria de participar”.

Voltou ao seu livro e adentrou na vida dos personagens. A história era tão instigante que por duas horas seguidas não se deu conta do que se passava na calçada. Saiu da varanda, comeu algo na cozinha, foi ao banheiro, tomou banho, voltou à varanda com a máquina fotográfica nas mãos para tirar uma foto do mesmo lugar que há vinte anos fixava sua câmera, para registrar as cenas do mesmo ângulo. O que modificava naquelas imagens diárias era a presença de transeuntes com suas emoções ou a ausência deles, a luz, o tempo. Todo o dia, às dezoito horas, buscava sua polaróide, que ao mesmo tempo em que a foto era tirada também era revelada. Datava a foto e a recolhia aos álbuns identificados por ano e dia. Esse era o único ritual que não admitia faltar em sua rotina. Era por causa dele que ela não viajava para conhecer outros países ou o seu próprio país, não visitava ninguém e não aceitava visitas nesse horário. Talvez fosse por isso que se apegava tanto aos livros. As descrições de diferentes lugares lhe permitiam construir outras cidades. Os autores a faziam viajar e acrescentar às descrições pontos imaginados por sua leitura. Isso porque ela sentia que se não fotografasse as cenas cotidianas sob o mesmo ângulo e horário, a vida não faria mais sentido.

Um dia foi ao médico no início da tarde e logo após a consulta, no caminho de volta, entrou em um sebo de livros raros e acabou perdendo a noção do tempo. Deparou-se com livros que sempre tivera vontade de ler, mas pelo fato de as edições antigas já terem se esgotado, não conseguira até então entrar em contato com aquelas obras. Ficou se deliciando com inúmeros livros, selecionou alguns e os pagou. Somente quando estava saindo do sebo observou o relógio. Quando viu que se aproximava o horário da foto, entrou em pânico. Parecia que parte da sua essência iria se desmanchar caso não chegasse a sua casa a tempo para fotografar a cena do cantinho de sua varanda. Saiu correndo, tomou um taxi, separou a quantia a ser paga no trajeto, pediu para que o taxista se apressasse, pagou, pôs-se a correr até sua casa, esbarrou em várias pessoas, subiu as escadas e já com dor de veado alcançou sua porta, pegou a câmera e esbaforida posicionou a máquina no mesmo lugar de sempre e clicou, pontualmente no horário. Chorando, manchou a foto recém saída da máquina.

Sentou-se na rede e se debulhou em lágrimas. Parecia que aquele momento de exacerbação do desespero e a conquista do importante objetivo acabaram por trazer à superfície opressões outras que transbordavam para além de uma simples captura de imagem. Mas, antes que pudesse reconhecer os motivos do seu choro intenso, uma atriz famosa atravessava a rua com sua filha gritando:

- Mana Schiva, pare de sair correndo sem me dar a mão, os carros podem te atropelar!

Dona Doca não se conteve, enxugou as lágrimas e perguntou:

- Ei, você aí!

A atriz virou-se, olhou para cima e então disse:

- A senhora está falando comigo?

- Sim, estou. Gostaria de saber se o nome da sua filha é realmente Mana Schiva – questionou dona Doca.

- Sim, senhora.

- Mas você não acha que sua filha não poderia ter um nome menos esquisito? Não sei o que se passa pela cabeça de vocês, artistas, parece que querem que seus filhos já nasçam com um suposto nome artístico. Oras, e se eles não quiserem ser artistas? Terão de carregar esse fardo pelo resto de suas vidas? Você nasceu com o nome de Maria Silva, depois que começou sua carreira artística mudou seu nome para Eva Viño. Primeiro: no Brasil não existe esse til em cima do n, isso só existe na língua espanhola. Segundo: nunca entendi essas mudanças de nome, é só para dar um ar de internacionalidade?

A atriz virou-se, pediu para a criança ir caminhando e levantou o dedo médio para a dona Doca. Esta, por sua vez, começou a gargalhar:

- Acho que depois dessa conversa, você vai pensar duas vezes antes de colocar um nome artístico no próximo filho que você tiver – concluiu.

Nesse momento, toda a circunstância de desespero tinha se diluído. A vida dos transeuntes e a compra de novos livros tão desejados trouxeram-lhe paz suficiente para derreter a instabilidade de quase não conseguir tirar a foto com a pontualidade de sempre. A varanda, lugar onde mais poderia se encontrar dona Doca, trazia a leveza e a familiaridade reconfortante para enfrentar a passagem do tempo. Deitou-se na rede, olhou o céu, o final de tarde proporcionava uma mistura de cores, as nuvens traziam o laranja, o rosa, o violeta e um dourado singular. Estava tão maravilhada com aquele espetáculo, que dona Doca pela primeira vez percebeu-se pequena como se fosse uma formiga diante da imensidão das maravilhas que a natureza apresentava.

Enquanto isso uns violeiros começavam a se posicionar na sacada da casa do outro lado da rua. Todas as sextas se reuniam para tocar: sambas, bossas, choros. Naquela noite principiaram com uma bossa que nunca haviam tocado antes. A letra da música adentrava a alma de dona Doca e trazia lembranças doídas de duas décadas atrás. A canção vinha suave: A insensatez que você fez/Coração mais sem cuidado/Fez chorar de dor/O seu amor/Um amor tão delicado/Ah, porque você foi fraco assim/Assim tão desalmado/Ah, meu coração que nunca amou/ Não merece ser amado/ Vai meu coração ouve a razão/Usa só sinceridade/Quem semeia vento, diz a razão/ Colhe sempre tempestade/Vai, meu coração pede perdão/Perdão apaixonado/Vai porque quem não/Pede perdão/ Não é nunca perdoado.

Dona Doca foi tomada por uma melancolia profunda. Sentia-se vazia ouvindo a letra e a melodia daquela canção. Trazia aquela música, recordações do momento mais vivaz de sua trajetória. Aquele em que tinha se apaixonado, mas que por causa de sua severidade se desmanchara. A lembrança daquela história seria apenas mais uma foto que ela colecionava, mas essa imagem não a tinha em papel. A canção falava muito bem do seu apego ao vento que ela colhera e fizera dos momentos em que estiveram juntos tempestades de ciúme, de um amor doentio, que procurava na obsessão uma forma de traduzir sentimento. O amor foi transformado em orgulho. O orgulho, em rancor. O rancor, em adeus.  

A próxima canção cantada pelos violeiros foi um samba de Cartola e Elton Medeiros: A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/ Eu vi a mocidade/ Perdida/ Fim da tempestade/ O sol nascerá/ Fim desta saudade/ Hei de ter outro alguém para amar/ A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/Eu vi a mocidade/ Perdida. Essa trazia uma mensagem de esperança da qual nunca teve. Entendeu que as canções e os livros serviam a ela de grandes aliados para enfrentar o tempo. Uma ansiedade a tomou, seu coração começou a bater muito forte, veio uma dor aguda, as pontas de seus dedos dos pés e das mãos formigavam de forma que não conseguia movê-los. Sua visão tornou-se turva. Passou a não escutar.

As canções continuaram. Apenas a varanda não mais as vivenciavam. 

(texto publicado pela Revista Meiaum, n. 8, novembro de 2011)

Comoção pela diferença

Sentada há pelo menos trinta minutos no banco de uma parada esperava o ônibus passar. Depois de tanto tempo sozinha, finalmente chega alguém e senta-se na outra extremidade do banco. Era um senhor que aparentava ter em torno de cinqüenta anos de idade. Lá estávamos eu e ele silenciosos, em pleno sábado, em um local onde trafegava quase nenhum carro.

A espera pelo ônibus me deixava enfastiada, pois a sensação da passagem do tempo era nítida. E quando sinto o tempo passar, como se fosse um conta-gotas, mais vontade tenho de que algo aconteça, para que eu não persista dando conta da presença dos segundos.  Foi nesse momento em que a angústia pela sensação de perda de tempo me tomava que o senhor começou a balbuciar algumas palavras. Ele parecia um louco com o olhar fixo no horizonte, sem perceber que tinha alguém ao seu lado. Do tédio passei ao espanto. Amedrontei-me. Não sabia o que fazer. Se saísse dali, deveria caminhar por muito tempo até achar outra parada, mas se permanecesse poderia correr o risco de ser abordada por aquele senhor que me parecia ter algum distúrbio. Parei por um instante e me indaguei: qual o problema de uma pessoa falar sozinha?

Ele, de repente, olhou para o lado e se deu conta de que eu estava ali. Disse: “Perdão por estar falando sozinho. Não notei sua presença. Estou atordoado pelo o que acabo de ouvir. Há momentos na vida da gente em que não acreditamos ser possível tal tipo de reação, mas acaba acontecendo quando menos se espera. Por várias vezes já fui vetado em entrevistas de emprego. Creio que a cor da minha pele é um quesito analisado com profundidade por quem me entrevista. Não crêem na capacidade de um negro desempenhar alguns tipos de funções. Você nunca deve ter passado por tal tipo de discriminação. Mas dói sentir ser apartado pelo outro. Você ser julgado por algo que te caracteriza, que faz parte da sua identidade”.

Tentei amenizar a situação dizendo que algumas vezes pelo fato de ser mulher, já tinha sofrido assédio moral no trabalho por parte de colegas. Afirmei: “quando se é mulher em um posto de chefia também se sofre preconceitos por parte de alguns”. Ele me interrompeu: “mas há diferenças entre a raça e o gênero. Não se costuma ver negros - como eu, sem nenhum tipo de miscigenação, como você pode ver sou um negro azulado - desempenhando alguns tipos de trabalhos e quando se vai a uma entrevista é nítido o olhar do avaliador ou da avaliadora. Hoje superaram esse olhar e transpareceram para a fala a forma de me verem e creio que a forma com que fui tratado está no inconsciente de várias pessoas. A sutileza das palavras escolhidas não me deu forças pra contra-argumentar. Falaram-me: ‘a empresa precisa de pessoas com a clareza das funções que deverão ser desempenhadas fato que não consigo vislumbrar na sua pele.’ Depois me pediu desculpas e complementou: ‘não quis dizer pele, quis sim dizer em você.’

Como se a raça fosse pressuposto de vários tipos de funções. Há categorias em que a característica da raça conta menos – lixeiro, por exemplo - e há outras funções em que ela conta mais. Não quero aqui tecer conceitos muito rebuscados da questão da fragmentação da sociedade em identidades pouco transparentes. Mas dói tanto ver a sua preterição pelo fato de ser algo que você não escolheu ser, apenas é. Por exemplo, quando se é homossexual. Basta encenar para os outros que é um heterossexual, para tanto se lima trejeitos e a forma de se vestir, passa-se a ser um personagem em um mundo real. Isso para que os outros te aceitem sem que precise passar pelo o que eu passei. Esconde-se sua essência para não sofrer em palavras. Talvez, você que é brasileira, branca, provavelmente heterossexual e de olhos claros não consiga sentir na pela essa dor aqui no Brasil. Mas tente ir para um país onde há preconceito contra latino-americanos e que o seu destino para esse país se deva a razões econômicas, e por isso você tenha entrado no país de forma ilegal. Na mesma hora, você vai conseguir sentir esse olhar que te anula  e te corrói. Sem que você possa fazer muita coisa a respeito”.

Então falei a ele: “sentir a dor do outro é a melhor forma de não provocar dor”. Foi então que ele olhou diretamente pra mim e se pôs a chorar copiosamente. Havia chegado o ônibus desse senhor e então ele se foi.

Daí me veio à mente todos os comentários de pessoas mais próximas que me reprimiam dizendo que eu dou corda pra qualquer maluco que se senta ao meu lado. As pessoas têm medo de dialogar com estranhos. Talvez seja o indício de uma sociedade violenta e desigual, o que faz com que as pessoas se temam mutuamente. Para alguns, qualquer ser humano é suspeito até que ouçam referências sobre ele. Primeiro, têm de saber se a pessoa tem profissão ou se estuda; em seguida se não é filho de chocadeira. Se a pessoa não tiver dentes na boca nem chegam perto. É a neurose coletiva que deixa os seres humanos mais isolados em suas vivências interiores pouco compartilhadas.

 Mas nunca tive problemas, nessa trajetória de dar corda pra estranhos. Creio que as minhas aventuras dialógicas são acompanhadas por anjos protetores que não permitem qualquer tipo de aproximação de perturbados perigosos.  Conversar com pessoas no meio da rua é um risco que se corre, mas se der sorte, pode-se ter momentos inusitados de trocas que nunca se teria se não se abrisse a essa oportunidade. Às vezes, fechamo-nos num círculo tão hermético em que os que não são parecidos conosco não têm acesso ao miolo onde paira a nossa identidade. Os choques são imensos quando não se pensa igual, por isso acaba-se por viver em círculos higienizados, onde a menor sujeirinha é dedetizada com um argumento de ordem. Mas há momentos na vida da gente em que a escuta nos abre a mundos em que nunca estaríamos se não fosse pela palavra do outro.

(texto publicado pela Revista Meiaum, n. 6, em setembro de 2011)

Hospício entre quatro paredes

Ao sair de casa me deparo diariamente com os dizeres: quer banana, vai plantar. Pregado na bananeira que se encontra dentro do terreno do Seu Antônio e lá estão as bananas apodrecendo no pé. Talvez ele seja um sujeito politicamente incorreto por essência. Sabe aqueles sujeitos que fazem piada de tudo: de paraplégico, de negro, de gay, de índio, de loira burra e tudo o mais que possa chocar uma pessoa que segue as regras do jogo social?

Aposto que ele faz isso porque tal atitude faz parte do seu quite de sobrevivência. Afinal, existem pessoas com as quais nos deparamos no dia-a-dia que desejam ser o centro das atenções. Para tanto, buscam se destacar sendo o avesso do que é o padrão. Seu Antônio, acredito eu, tem a certeza de que estamos em nossos lares indignados com sua postura e tal fato deve diverti-lo de forma ilimitada.

Contudo, esse meu vizinho de frente, não está entre os mais excêntricos. Não posso deixar de comentar sobre o Manoel e sua esposa que moram na casa da direita. A mulher gosta de fumar um baseado sempre antes de dormir. Creio que isso a deixe mais calma e faça com que seus nervos se descontraiam, o que contribui para que comece a sonhar mais cedo. Subentendo isso, porque quando não fuma “unzinho”, as luzes do quarto do casal ficam acesas até altas horas e em alguns momentos a ouço chorar. Nunca compreendi o porquê desse chororô, pois brigas jamais escutei daquela casa. Coisas da vida, essas que não conseguimos explicar. Talvez se eu fosse psicóloga dela, o mistério poderia ser desvendado.

Ainda não falei do marido. Aquele sujeito também tem problemas e já cheguei a um diagnóstico: é portador de transtorno obsessivo compulsivo, mais conhecido como TOC. Isso porque ele toda vez que estaciona o carro na garagem de sua casa, fecha e abre duas vezes todas as portas do automóvel para se certificar de que todas estão fechadas, para só então apertar o botãozinho que trava os ferrolhos do carro.

Sem falar no quanto o lixo do casal me dá nojo. Se pudéssemos medir o grau de civilidade dos seres humanos pela característica do lixo, tenho certeza que o deles é extremamente baixo. Eles entulham na rua, inúmeros saquinhos plásticos imundos, inclusive conseguimos ver o que tem em cada um. Outro dia, consegui distinguir entre os sacos um cheio de papéis higiênicos melados de fezes. Creio que eles acreditam ser o lixeiro um ser humano qualquer, não merecedor de um mínimo de cuidado. Pergunto-me: será que não têm condições de comprar aqueles sacos azuis grandes e enfiar aquela imundice dentro?

Dentre as histórias que acumulei em toda a minha caminhada pelos lugares onde já vivi a do vizinho dos fundos é a mais comum, infelizmente. O senhor que vive no terreno, toda vez que chega bêbado em casa, coloca um forró para tocar no mais alto volume e começa a espancar os filhos e a esposa. Hoje os meninos estão com quatro anos e não conseguem se comunicar sem gritar e com agressividade. Esse é o laboratório de como não se deve criar seres humanos.

Já a família que vive na casa à esquerda é a que considero com o menor grau de distúrbio. Mesmo assim, em alguns momentos, surpreendo-me com o nível do bairrismo que trazem. Logo que tais vizinhos se mudaram para o condomínio hastearam a bandeira do Rio Grande do Sul. Passado dois anos, essa bandeira foi substituída pela a do Internacional Futebol Clube. Todas as vezes em que há jogo do time do coração é um festival de gritos, fogos e choros. Fogos/gritos de ufanismo, quando há vitória e choros/gritos de insatisfação é o reflexo da derrota.

Lá estou eu no miolo desse zoológico humano. Não posso dizer que sou a sensata no meio do sanatório. Gosto de caminhar pela casa nua, molhar a grama e brigar com os cachorros usando palavrões carinhosos nos momentos em que os meus cães fazem com que eu trabalhe dobrado. Como nos dias em que estou limpando o quintal e eles entram provocativamente e defecam por toda a parte. Não há como não soltar: puta que pariu, seus escrotos, vocês acham que eu sou a escrava de vocês?! E, logo depois, vem o remorso e vou abraçando um por vez.

 Essas características já provocaram alguns falatórios nas famílias vizinhas e, como não poderia deixar de ser, fragmentos da fofoca alheia já alcançaram os meus ouvidos. Dizem: será que essa moça não entende que aqui nesse condomínio vivem pessoas de família? É isso aí, cada casa uma história, cada ser humano um arcabouço complexo de loucuras e quando observamos de longe a vida dos outros só conseguimos entender que o hospício mora ao lado, quando não em nós mesmos.

Fagositose de seres

               Grama cor de areia, árvores sem folhas, céu esfumaçado, ar sem quase moléculas de água. Cenário de interior. Distante do mar, distante de rios caudalosos. Os segundos não são contados nesse lugar. Não existem contadores de tempo. Apenas o sol e a lua permitem compreender que há ciclos se passando. O mais leve zunido é escutado. Televisão ali não há, rádio também não.  Nenhuma caixa que transmita som é encontrada dentro do vale onde está incrustado o povoado circundado por montanhas de cumes altos. Os sons advêm da natureza, dos instrumentos de sopro que estão lá há muitos ciclos: clarinetas, flautins, flautas, oboés, fagotes, saxofones, trompas, trompetes, trombones, tubas. De resto, os barulhos são construídos pela prosa fertilizada com as nuances da vida e dos causos contados pelos habitantes do local.

               Em torno dos sons harmônicos encontra-se a alma do lugar. As músicas compostas e apresentadas pela orquestra de sopro desvelam a essência do povoado. Diariamente, quando a noite se inicia, os músicos reúnem-se ao ar livre em algum canto da cidade. São levados aos diferentes locais intuitivamente e da mesma forma compõem a música diária. Captam as palavras e as entonações expressadas por cada habitante, como se tivessem canais invisíveis que transmitissem o pensamento dos cidadãos até seus sentidos. A cada dia conjugam os sentimentos absorvidos e os evidenciam em forma de notas e acordes. Drama, ironia, suspense, felicidade, temor e tantos outros.

O regente da orquestra encontra-se em cada habitante, não havendo a personificação de um sujeito com uma batuta na mão. O som das composições reverbera nas montanhas e de qualquer lugar do vale escuta-se a música, o que provoca nos habitantes a sensação nítida do que cada um vivenciou naquele dia. Isso faz com que o falatório sobre a vida uns dos outros não seja necessário. No início da noite, cada pessoa se enxerga por dentro. Compreendem-se mutuamente e percebem a complexidade dos sentimentos e suas contradições. Nessa medida, o pré-julgamento é dissolvido, pois o desconhecido se revela ao simples acorde dos sopros musicais. Há a compreensão de si e dos outros. Cada nota tocada adentra no espírito dos indivíduos, instigando-os. A música percorre túneis escuros iluminando-os.

Aquele lugar contorce os eixos dos trilhos da história. Lá os relatos não são armazenados por um tempo reto, porque o calendário não alcançou aqueles cidadãos. Os causos são acumulados pelas gerações a partir da noção de ciclos. O nascer, o crescer e o morrer. Nesse meio tempo onde a vida brota e se esvai situações vão acontecendo. Das circunstâncias corriqueiras, algumas são escolhidas como marcantes. Outras são afastadas. Mas por que as histórias que se eternizam no tempo e são passadas de geração em geração são escolhidas? Entre um ciclo e outro, pessoas capazes de selecionar fatos e contá-los com maior perspicácia persuadem os outros de que as histórias escolhidas são importantes.

Muitas dessas pessoas são sábias, outras sagazes. Têm a habilidade de selecionar as palavras mais contundentes para transmitir os pensamentos. Conseguem retratar as histórias a partir de uma visão crítica e de um olhar mágico. Aliam a realidade à fantasia - mas não sabem ao certo até onde a fantasia é verdade e até onde a realidade é ficção - de forma a dar encantamento aos relatos, a apreender a atenção dos sujeitos e a fazer com que os corpos daqueles que escutam e vêem se contorçam pelo riso ou se espantem pelos desdobramentos dos relatos. Preenchem o tempo das crianças e dos adultos com suas invencionices-reais e com seus fatos-encantados.

Daquele povoado, as pessoas nunca saíram, em parte porque não queriam ter o trabalho de escalar as montanhas que rodeavam o lugar, em parte porque acreditavam nas histórias relatadas pelos sábios e continuavam cultivando o laço que dava identidade a cada indivíduo. Os sábios diziam que as montanhas traziam consigo o elemento mais caótico de todos os sentimentos humanos – o contraponto. Escalando aqueles elevados de terra e rocha, os aventureiros poderiam alcançar o outro lado do pensamento. Aquele lado do qual ninguém nunca disse e somente poderá dizer até que alguém suba as montanhas e veja o que há por detrás delas. Para tanto, paga-se o preço – a travessia – caminhar pelo desconhecido não é tarefa pacífica. Desapegar-se da tranqüilidade advinda da música sublime e das palavras contadas com tanta perspicácia, não é uma escolha qualquer.

Até aquele momento todos continuavam na trajetória da consolidação da unidade. Era como se fagocitassem uns aos outros. Olhar a rotina com ares de novidade. O desafio cotidiano de lidar com os dias e as noites de forma diversificada e divertida lhes bastava. O aconchego do povoado era tão bom. A preguiça de se debruçar em busca de conhecer o tal ‘contraponto’ era tamanha que a travessia tornava-se algo pequeno diante do ritmo que o cotidiano mágico lhes proporcionava.

Poema I

Oh, que saudades que eu tenho.
Saudade?
Tenho sim, apego
Ao desassossego
Ao prego fincado em mim.

Melancolia dura e rachada.
Retalhos do que poderia juntar e chegar a mim.
Pedras empilhadas e pilhadas.
Vida velada.

Oh, que saudades que eu tenho.
Saudade?
Tenho sim, apego
Ao meu preto velho desdentado
Sentado ao meu lado.

Vidas conciliadas.
Vidas afastadas.
Palavras pouco trocadas.
Presença habituada.

Morte chegou,
Levou o preto.
E cá estou
A tentar despregar a dor do desassossego.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

No fio da navalha

Havia algum tempo que estavam naquela posição, detinham-se ali, pois ao menor sinal de movimento do outro o valor vida estaria em risco. Perturbados encontravam-se, sem saberem o que se passava pela cabeça do outro. Os sentidos os faziam inteiramente presentes. Analisavam-se mutuamente. Pareciam animais em busca do ataque final, para se servirem do banquete. Chegaram àquela situação de forma obtusa, era como se o horizonte das escolhas em suas vidas houvesse se estreitado de forma irreversível. Sabiam que, ou entravam em consenso, ou algum dos dois sairia morto, ou ambos. Mas como confiar em sujeitos que portavam facas e que não tinham históricos de vida dignos de confiança?
Aos poucos, seus corpos foram ganhando pêlos, um transformou-se em tigre, o outro em jegue. Um era a caça, o outro o caçador. Não tinham para onde correr, pois estavam presos em uma sala fechada sem janelas, mas a razão humana perpetuava-se em ambos. As facas, que traziam consigo, caíram ao chão após a metamorfose. Permaneciam paralisados à espreita. Foi então que o sujeito que se transformara em tigre se apercebeu do seu poder. Suas feições principiaram a se configurar diante da nova realidade. O temor incorporou-se ao jegue, não conseguia se mover. Sabia que a morte estava próxima, visto não ter como se defender. Não tinha como argumentar algo, pois de humano somente restou a ele a essência; a possibilidade de articular as idéias pelos sentidos foi-lhe retirada.
Contudo, o tigre não conseguia atacar o jegue, pois aquele animal traduzia parte de sua identidade. Desde criança, o jegue era cultuado como animal sagrado no vilarejo onde começou sua vida. O homem entigrezado havia nascido em uma região árida e seu povo sofria com a seca perversa, então via no jegue a imagem da fortaleza, o alicerce para a sobrevivência. O animal inofensivo conseguia avançar pela terra empoeirada e desbravá-la em busca de água de beber e de cultivar o sertão. Assim, quedava o tigre apenas avistando afetuosamente o jegue. Em tal paralisia dos dois animais, alguma coisa atormentava o animal indefeso, que se questionava sobre o porquê de o tigre sabendo de seu poder não fazer nada contra ele.
Após algum momento, uma gosma começou a sair da pele de ambos. Um virou cobra, o outro rato. A relação de poder havia se invertido. O antigo jegue transformou-se em cobra e o tigre em rato. Nesse instante, o homem encobraiado começou a rememorar uma fase obscura de sua história - o terror que havia vivenciado enclausurado em um cubículo na época da ditadura militar. Os horrores daquele período começaram a emergir de sua memória, pois os únicos barulhos que ouvia eram de gritos desesperados dos companheiros de luta, os tiros de fuzil e os ruídos dos ratos. Naquele período, os ratos traduziam-se na base para a perpetuação de sua vida.
Imaginava, durante os anos em que estivera trancafiado, que enquanto existissem ratos, existiria vida. Aquele pensamento dava-lhe força, para que permanecesse em um estado precário de sanidade. Não podia entrar em contato com outro ser humano, a não ser os militares que vinham de quando em quando, mas esses equivaliam a nada, pois eram impiedosos. Arrancavam-lhe as unhas, queimavam-no com pontas de cigarro, para que delatasse os outros companheiros, mas nessas horas, só pensava no rato. Era o animal que o enrijecia para fortalecer-lhe o espírito e não abrir a boca nas sessões de terror. O Estado era a síntese da degradação humana, as mentes que divergiam do sistema eram achatadas, calcificadas, já os ratos eram a síntese da vida. Era o elo entre ele e o mundo, reconfortando-o.
Nesse ínterim, a cobra não conseguia mover-se em direção ao rato. Matá-lo estava fora de cogitação. Havia um laço histórico que o detinha ali, sem se aproximar do rato. Uma amizade que se transportou até o momento do encontro com aquele sujeito que portava uma faca e agora havia se transubstanciado naquele animal tão familiar. Por outro lado, o rato amedrontava-se ouvindo o chacoalhar da calda da cobra, sentia-se impotente e não entendia qual era o motivo que fazia a cobra não se mover em sua direção. Apenas começava a compreender que no mundo animal, a luta pela sobrevivência não se distanciava tanto assim do mundo humano, pois tudo era uma questão da lei do mais forte.
Em seguida, um vendaval trouxe os uivos do vento que batia nas paredes e no telhado do lugar sem janelas. Lentamente, o telhado foi se desmanchando e a areia caindo sobre a cobra e o rato. No mesmo instante, os corpos dos animais foram se metamorfoseando em diversos outros animais. Um assistia ao corpo do outro e observavam as belas modificações provocadas pelas transformações. Até que se viram parados diante de uma imensidão de areia, pois a casa onde se encontravam havia virado pó e se misturado ao tapete bege do deserto. Os sujeitos, depois de alguns minutos, voltaram ao seu estado inicial, entreolharam-se maravilhados, miraram as facas, mas subitamente, seus corpos se desmancharam em areia. O vento se intensificou e um redemoinho formou-se. Não se sabia o que era um, o que era o outro, o que era a casa, o que era o deserto.

Decantar

Josefina caminhava pela rua com uma sensação estranha. Sentimento de vazio. O dia encontrava-se acinzentado: a rua, os carros, o céu grafitado pela poluição, os vidros das janelas do centro comercial sujos. As pessoas que circulavam pela rua não a olhavam. O tempo corria apressado como sempre. Naquela quinta-feira, Josefina saíra do trabalho sem dizer uma palavra. Sentia a vida descompassada, sem o elo que liga um dia ao outro. Não sabia se aquele tempo sem cor contribuía para o sentimento do nada-interior ou se, na verdade, o mundo não tinha propósito de existir.
Parou na rua em que havia um cruzamento. Os carros transitavam sem dar oportunidade aos pedestres para a travessia. Eis que José, um amigo de infância, parou seu fusquinha amarelo quando o semáforo avermelhou-se. Naquele instante, ela o observou com a boca entreaberta, como se aquela cena decorresse de um inusitado acaso. Havia anos que não o via. Agora, ele se encontrava com uma barba comprida e algumas marcas da idade gravadas em seu rosto. Ao iniciar a passagem de um lado ao outro da rua, Josefina o olhava fixamente, acenou sem medo de não ser reconhecida. Seu gesto foi involuntário. José, então, disse em voz alta para que ela o pudesse escutar: na nossa infância, você foi meu amor platônico.
Ela desnorteada correu para o outro lado da rua, pois o semáforo já se esverdeara. José, por outro lado, permanecia parado a observando caminhar a passos largos, as buzinas começaram a soar de forma ensurdecedora. Ele despertou do transe e continuou seu caminho. Josefina, por sua vez, parou na esquina da rua e uma sensação de que a vida estava fora do eixo a dominou. Sentiu vontade de vomitar, mas mesmo assim se virou para continuar a caminhada. No mesmo instante, um vidro que se soltou do prédio em construção caiu a sua frente e se espatifou na calçada. Os cacos penetraram sua pele, mas ela não sentia dor. Apenas olhava o sangue escorrer por sua perna. Aquele vermelho escuro se confundia com sua pele negra fazendo com que a derme se escurecesse ainda mais. Via beleza no formato das gotas que brotavam dos cortes.
Naquele momento, uma senhora com um rosto familiar aproximou-se, pegou um lenço em sua bolsa, olhou-a com afetuosidade, pediu-lhe licença e começou a limpar os ferimentos. Aquele gesto trouxe-lhe paz, parecia que o sopro de alguma divindade trouxera o ser altruísta que transbordava carinho.  Gesto que lhe fortaleceu o corpo para continuar a andança. Josefina caminhou mais duas quadras, em seguida virou na esquina. Andou mais três quadras e se deparou com o mar. Mas o mar havia se afunilado. Era como se as ondas que estavam a bater na areia tivessem uma amplitude infinita, mas à medida que o mar caminhava para a imensidão ele se estreitava, fazendo com que o horizonte se transformasse em um buraco.
Josefina sentiu uma vontade tremenda de mergulhar no mar, enfrentar as ondas e nadar até o ponto negro que se formava no horizonte. Começou a se despir. Primeiro retirou o casaco. Até então os transeuntes não a observavam. Depois retirou a blusa. Em seguida, as calças. Começaram a olhá-la. Quando desabotoou o sutiã, uma voz conhecida gritou ao longe: não! Era seu chefe. Um senhor de oitenta anos, redator-chefe do jornal em que ela era jornalista. Um humanista convicto, idealista e sedutor.
Em seguida outros gritaram: depravada! Outros contribuíram gritando: Suicida! Alguns, junto com ela, começaram a tirar a roupa. Em torno de dez pessoas ficaram nuas na praia. Josefina não virou o rosto, apenas sabia pelos murmúrios e cochichos que estava sendo observada por centenas de pessoas e que entre elas se encontrava seu chefe. Aquela sensação de vazio que sentira ao sair do trabalho se transformara em felicidade plena. Agora sua vida tinha propósito: saber o que tinha por de trás daquele funil.
Saiu correndo. Furou várias ondas. O mar estava puxando muito. A correnteza contribuía para que Josefina chegasse com rapidez ao funil, pois era como se a maré estivesse baixando a cada segundo. Mergulhou e com os olhos turvos observou a natureza marinha. Como era calmo e tranqüilo aquele momento. Estava se sentindo em paz consigo e com o mundo. Tudo fazia sentido. Tudo era vida plena de significado. As cores avivaram no fundo do mar. O cinza da cidade em que se encontrava foi substituído pelo o azul do mar, o verde das algas, o vermelho dos corais e as múltiplas cores dos seres vivos que habitavam aquele lugar.
Chegou ao funil.... Zummmm...De repente, Jozefina virara semente, começou a penetrar a terra. Aos poucos, foi vasculhando a crosta terrestre até alcançar o magma. Morno, quente, pelando. Chegou ao centro da vida.  Ahhhhhhhhhhhhhhhhh... Josefina abriu os olhos, viu o armário, o quarto encontrava-se ainda escuro com os primeiros raios do amanhecer adentrando pela janela. A aventura não passava de um sonho.

A coisa

          Jarbas naquele momento não conseguia parar de falar e nos seus esquecimentos vinha sempre a palavra ‘coisa’ tapando os vazios das falhas vocabulares. Suas entonações juntamente com o contexto faziam com que nós o compreendêssemos. Falava de política, mas como a afoiteza era tamanha pelo fato de sentir-se baleado pelos votos recebidos pelo adversário de seu candidato, lá vinha a palavra ‘coisa’ em seu auxílio. Ela o fazia sentir-se confortável. Era aquilo que lhe faltava, para permitir sua navegação na construção argumentativa de seu ponto de vista.

Foi entre uma ´coisa’ e outra esbravejada por ele, que percebi como essa palavra nos ajuda, visto ser ao mesmo tempo o nada e o tudo.  Preenche os vazios. Permite transformar o silêncio do esquecimento em um show de contorcionismo em busca da palavra correta para se poder continuar o diálogo. Como já dizia o poeta: “há tanta coisa entre o céu e o mar.” Dela nos servimos, dela nos safamos de maus bocados. Com ela permitimo-nos sair e devorar o esquecimento.

Voltando ao papo do Jarbas. Após alguns minutos, o atropelo de suas palavras deu espaço a uma serenidade. A palavra ‘coisa’ foi dando, aos poucos, espaço às palavras precisas e fez com que as expressões faciais e gestuais agressivas fossem se transformando em simples movimentos, pois afinal, aquelas palavras não precisavam ser explicadas, elas por si só permitiam a compreensão.

Foi nesse momento que me veio à mente. Como deve ser difícil para uma pessoa que não sabe ler e escrever ser compreendida. Em seguida me corrigi, a linguagem é viva, não se precisa de construções rebuscadas para serem passíveis de compreensão. Novamente, voltei e me questionei. E os sentimentos profundos podem ser descritos sem a percepção dos diversos significados das palavras? Fiquei pensando por muito tempo e, nesse ínterim, Jarbas já tinha passado uma hora falando sem que permitisse a intromissão de qualquer pessoa em sua fala.

Aquele momento era para ele uma catarse das escolhas do povo brasileiro. Como a sociedade não o podia escutar, visto ser ele um simples profissional liberal que todo o dia vai ao seu trabalho, paga os impostos em dia e é explorado até 21h, sem que seu patrão contabilize as horas extras trabalhadas. Então cabia, naquele instante, a nós, amigos, a escuta de suas frustrações quanto às eleições. Nesse momento parei para tentar prestar atenção a suas argumentações, dizia ele:

Os rituais diários fazem parte de qualquer vida comum. Todo dia um ciclo, todo ano um ciclo. A vida em círculos e de quatro em quatro anos mais uma escolha por um “novo” projeto de país, ou o mesmo com novas roupagens. Parece que hoje os projetos de governo se transformaram em um só apenas. Os ideais se uniformizaram, não sei se isso se deve a um amadurecimento democrático ou se deve à vontade de poder em que qualquer projeto deve contemplar o que a massa quer. E, com isso, vai se maquiando os programas de governo aqui e acolá para se tentar angariar o maior número de votos. A descrença na política é enorme. Os absurdos são inúmeros. Eu chego até o século XXI descrente totalmente de mudanças e transformações, esses políticos  pasteurizados em suas plataformas um tanto quanto artificiais...

E por aí o Jarbas continuava seu discurso. Era o sujeito mais descontente que já conheci. Para ele, a política não tinha mais solução. Os ideais morreram e não se tinha como ressuscitá-los. Não consegui continuar a escutá-lo, pois me instigava a questão quanto aos sentimentos profundos serem possíveis de serem racionalizados sem o conhecimento da teia inumerável de palavras que contempla a língua portuguesa. Pensei, pensei, pensei. E, sem conseguir uma resposta final, cheguei à seguinte prévia percepção intuitiva. Sentir, todo mundo sente, expressar nem todos conseguem. Pessoas irracionais são irracionais independentemente de palavras. Sentimentos profundos? O que é isso? A dor pela perda de um filho? A dor pela perda de um amor? A paixão? Isso todos sentimos.  A compreensão da dor e sua exteriorização e a palavra se cruzam e se descruzam, mas não se determinam.

            Minha cabeça sem saber ao certo em que ponto esse questionamento poderia desembocar, parei de pensar e saí do meu mundo. Foi, então, que ouvi o Jarbas deixar alguém, finalmente, falar, mas só depois de dizer: O Brasil é uma coisa!

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Trans-lúcida

Sem intenção de mover,
Cansada de querer contato,
A leitura preenchia o tempo
No momento em que adentrou.

Veio de longe.
Escapuliu de mim,
O desejo de não ser
A malabarista a modular palavras.

A lorota em que me encontrava
Despejou sua última gota.
Sedimentou o que pairava.

Vagar no mundo
Do atuar pra não magoar.
Cada composição construída
Consumia o que restava.

Tornara-me pó
Triturada pela necessidade de inclusão.


Estava a vagar
Sendo metade de mim.

A dimensão do mundo interior
Trazia o odor da  adulteração
Do ser que parou de se compreender.

De repente com vontade de transformar
A opacidade da vida.
Derramei o que queria:
Os resquícios do que eu era em transparência.

Era da não-presença

Reunião de amigos,
Algumas baladinhas.
Várias
OLHADINHAS.

Teatro,
Tema dramático,
Será que é ela?
Virou automático.
Outras
OLHADELAS.

Cinema,
Não há problema,
Na escuridão,
OLHAR é comigo então!

Chega ela,
Sem medo
E diz:
Desliga esse aparelho.
Pra que tanto OLHAR?
Não consegue VER, o que está aqui?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ainda, uma escolha


Lá estava uma velha porta feita de mogno escuro a sua frente. Temia abri-la e conhecer o outro lado. Sua intuição lhe dava a impressão de que por detrás daquela passagem algo de novo o esperava, por isso Seu Joaquim aguardava do lado de cá da madeira. Começou a observá-la detidamente. Percebeu que em cada traço do antigo tronco lapidado parte de sua memória habitava. Por meio dos riscos milenares - cavucados pelo tempo – ouvia vozes, avistava luzes. Entrou em transe subitamente. De repente, sua visão tornou-se turva e ele caminhou por um túnel. Observou sua própria história como um expectador.

Ali estava ele sentado no seu banco cativo da praça onze de São João do Brejo Velho. O nome da cidade era tão comprido, que todos a chamavam de Brejim.  Ele jogava diariamente todos os tipos de jogos: carteado, dominó, buraco. Sempre escondia um ás, um sete de copas, um três de espadas, um coringa e algumas pedras de dominó no bolso para usá-las no momento correto. Seu Joaquim era muito sagaz e rápido. Assim que as apostas acumulavam, utilizava suas artimanhas. Todavia, quando as apostas estavam baixas, fazia questão de perder, pois se vencesse a todo o momento poderia despertar nos companheiros de jogo uma pulga atrás da orelha.

Além do jogo, tinha prazer em conquistar todos a sua volta com seus causos. Mentia cotidianamente sobre sua história de vida. Agregava aos fatos reais, que compunham sua trajetória, informações retiradas de livros de aventuras que lia desde a infância. Cumpria uma função social naquela cidade: entreter os seus cidadãos. Contador de histórias dos bons seduzia a todos com sua habilidade de narrar fatos históricos sempre adicionando situações picantes e supostas intrigas de família. Uma vez conseguiu trilhar a história do Brasil desde a época do descobrimento, passando pela monarquia até chegar à república, apenas relatando histórias de bastidores. A população de Brejim passou a ter uma cultura ao avesso por causa de Seu Joaquim. Esse dom de narrar fez com que a praça, todos os dias, ao cair da tarde se tornasse o centro das atenções da cidade.

 Além disso, utilizava sua habilidade na arte da oratória para conquistar mulheres e persuadir os desatentos. Nesse cotidiano provocativo, ele acendia o fogo da paixão nas madames mais encasteladas da cidade e quando elas estavam completamente envolvidas, ele as dispensava sem o menor pudor. O seu prazer era aguçar nelas as partes de seus corpos nunca antes vasculhadas, além de fazer com que suas palavras fossem fonte de satisfação e luxúria. Saía desses casos de paixão assim que percebia o envolvimento, não porque era um mal sujeito, mas porque queria atiçar outras mulheres, devassá-las. Isso para ele era a tradução do que realmente seria viver. Quanto aos ingênuos, ele arrancava muito dinheiro e bens, esses ainda assim, continuavam convivendo com Seu Joaquim, pois sua companhia era viciante.

Naquele instante, Seu Joaquim sobrevoou sua vida toda e observou os bastidores de sua história. Achou graça de suas faceirices. Viu alguns dissabores que provocou com suas seduções descontroladas. Por fim, observou a praça repleta de pessoas querendo escutar suas histórias, mas ele não estava presente. Todos preocupados olhavam o relógio. Algumas amantes do passado enrugavam a testa a procura de uma resposta para o atraso de Seu Joaquim que sempre fora pontual. A cidade já tinha escurecido e ele não se encontrava lá. Começou a se indagar:

- Por que estou sobrevoando minha cidade e não consigo me comunicar com eles?

Acordou do transe. Permanecia em frente à porta escura de madeira milenar. Repentinamente, a porta se abriu e lá estava o Juízo Final dentro do elevador. O Juízo perguntou:

- Você quer descer ou subir? Não há volta!

- Seu doutor, gostaria de te dizer algo muito importante. Vamos até uma praça que fica aqui perto. Depois a gente volta e eu decido se subo ou desço. Só lhe peço isso: alguns minutos do seu tempo. O senhor não vai deixar de atender a um velho cidadão que não tem mais nada a perder, vai? – questionou Seu Joaquim.

O Juízo Final, meio desconfiado, atendeu ao seu pedido. Ambos foram à praça onze e o Juízo pela primeira vez entendeu o que era o verdadeiro prazer da vida: ouvir aquele velho prosador. Desde então, o Juízo Final habita Brejim e o elevador, transformador de seres humanos em almas, foi desativado.

Abraço

A vida se expande no abraço.
O sangue corre e navegando traz calor.
Energia em contato
No ato de pele com pele.

A vida se convida ao abraço.
Nos braços do outro,
o recado se dá.

Corpos se aproximam.
Faces se enlaçam.
Pernas estremecem.
Daí surge o compasso da vida serenada.

domingo, 18 de dezembro de 2011

C'est la vie

Se não fosse daquele jeito estaríamos condensando nossas histórias, mas as dúvidas, medos, diferenças nos enfraqueceram e fizeram com que temêssemos o laço. Por deixar que tudo evoluísse para aquele fim, agora me sento sozinho nesse quarto, olho pela janela e vendo não enxergo. Adormeceu o corpo. Gelou a alma. Ainda assim o coração bate. Estar vivo sem querer. Como deixei chegar a esse ponto? Por que não persisti? A vaidade fez de mim esse ser perverso. A simples palavra que poderia reavivar as pontas dos fios que teciam a nossa caminhada comum não saiu da minha boca no momento certo. Como queria me transformar em Deus, rebobinar a história e começar tudo outra vez.
Passar e repassar a cena da discussão na cabeça. As pedras removidas do passado apenas para machucar o outro. Palavras ditas sem filtro. Como dói rememorar os gritos irracionais. Parece que, em alguns momentos da vida, deixamos os instintos tomarem conta do verbo. O animal que habita em nós é assustador. Remonta à pré-história. Passado o momento de fúria, a dor que nos humaniza estilhaça a alma. Quando se ama e se fere, logo depois vem a dor ácida do machucado feito no outro. O tiro de bala volta-se contra nós como bala de canhão. A vergonha me dominou.
Voltei-me para dentro do quarto. Minha perna tremendo, não sustentou meu corpo. Caí no chão. Pranto. Dor. Vômito. Frio. Cólica. Gritei: perdão! Não havia ninguém. Apenas eu e os móveis. Arrastei-me até o banheiro. Liguei o chuveiro a gás. Fechei a porta. Adormeci no box. Algum tempo passou. Abri os olhos assustado. Estava sufocando. Sem quase ar. Levantei rapidamente. Caí. Estiquei o braço. Alcancei a maçaneta. Consegui abrir a porta. Meus pés e minhas mãos estavam dormentes e roxos. Amedrontei-me. Comecei a chorar me sentindo patético. Pensei: como alguém pode ser tão ridículo? Perder a pessoa que ama e agora estar prestes a perder os pés e as mãos.  Depois do susto, passei a ter vontade de gargalhar, mas não conseguia. As gargalhadas não saiam, afinal o corpo me exigia ar e não podia doar oxigênio às minhas gargalhadas. Um filme da cena atabalhoada passava em minha mente. 
Ensopado, sem conseguir respirar direito, com o vapor do banheiro saindo desesperadamente pela porta recém-aberta, os pés e as mãos começaram a formigar. Sinal de que o sangue ainda circulava até as extremidades do corpo.   Suspirei aliviado: perdi a pessoa amada, mas todo o meu corpo havia sobrevivido. Aquele fato acalentara parte da minha angústia: não havia se esgotado a minha vontade de continuar seguindo em frente. O incidente trouxe-me a consciência de que fosse o que fosse ainda estava ali. Troquei a roupa molhada por uma seca, peguei um rodo e um pano, enxuguei o banheiro, limpei o vômito, ainda assim a sensação de vazio permanecia. Organizar o apartamento não foi suficiente para que o buraco se preenchesse.
Quando se ama, o medo de perder a pessoa amada paralisa em parte o que somos. Podamos as arestas, sem perdermos a essência, para poder perpetuar o contato. Podei-me por muitos anos, para que a relação pudesse se estirar no tempo. Parte do que eu era, agora mais não sou. Mas não fui eu apenas o ser transformado no ser atual, ela também fizera a sua parte para caminharmos juntos. Sempre se tem que ceder para poder conviver. Esse é o preço que se paga para estar com o outro. Para viver em sociedade. Para construir relações profundas.
Em que momento tudo começou a se revirar em nossas vidas e começamos a nos maltratar em palavras? Não sabia responder a essa pergunta. Tudo ainda estava recente. Os cheiros, os paladares, os olhares. O frescor da separação deixara a dor. Este sofrimento não me permitia limpar a poeira, para ver com clareza as circunstâncias que contribuíram para se chegar àquele fim.
A campainha tocou. Meu coração latejou. Será que era ela? Conversaríamos outra vez? Mais uma chance se abriria? Lá estava o olho mágico que desvendaria o mistério. Olhei pelo buraco.  Era a Dona Geni, vizinha de porta. A expectativa desmanchou-se. Abri a porta. Dona Geni me olhou assustada. Perguntou: 
- O que há contigo meu jovem? Fiquei sem responder. Ela concluiu: 
- A Clô foi embora? 
Meu rosto confirmou. Ela perguntou se podia se sentar e contar uma história. Disse-lhe que gostaria de ficar sozinho naquele momento. Mesmo assim disse:
- Tem vezes que a gente se sente como se nos tivéssemos perdido, mas na verdade nos encontramos.
Ela saiu, sem dizer o motivo que a levara até minha casa. Creio que pediria um pouco de açúcar ou de farinha ou algum legume. Muitas vezes, ela nos pedia alguns ingredientes para finalizar a receita de uma torta ou de um cozido. Assim que ela terminava de preparar os pratos, vinha com um bocado para que pudéssemos experimentar. Acredito que aquele ato trazia o real sentido de vizinhança. Ela gostava de se sentir em comunidade. Essas trocas nos enredavam numa relação de amizade e o sentido de pertencimento e solidariedade era aprofundado.
A frase de Dona Geni martelava em minha cabeça, mas não fazia sentido. Só depois de alguns anos a compreendi.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Três oitão

Domingo lá na casa do Vavá

Dona Nenê encontrou Seu Zé

E desconversou sobre as coisas da vida

Deu voltas e mais voltas

Até chegar onde queria.



Mergulhou no convercê

Com vontade de encantá-lo.

Jogou seu charme,

Direcionou-se contra o vento

Pro modo de o perfume se espalhar.



Seu Zé muito ingênuo,

Ria da fala de Dona Nenê.

Será que não se apercebia

Dos encantos que ela trazia?



Dona Nenê então falou:

Seu Zé, que diacho é isso?

O Senhor não se deu conta do meu reboliço?



E ele, muito enrolado, disse:

Ah, Dona Nenê, eu não sou besta não.

Se falar alguma coisa,

Seu senhor vai pegar um três oitão.

A dois


A: Você quer se sentir bonita? Basta se rodear de pessoas feias e você conseguirá seu objetivo!

B: Credo! Você é tão ríspido! Parece que não tem paciência para uma simples conversa entre pessoas civilizadas!

A: Pelo amor de Deus! Eu não agüento mais esse papo de que sua bunda não é dura, sua perna é cheia de celulite, de que seus traços do rosto não são perfeitos. Todos estamos envelhecendo e esse é o preço que se paga por viver mais. A bunda cair, o braço ficar molenga, o rosto ficar repleto de marcas de expressão, o cabelo embranquecer. E por aí vai.

B: Por mais que esse seja o preço, eu bem que queria ser rica pra utilizar os artifícios científicos para postergar a passagem do tempo.

A: Berta, pelo amor de Deus! O que você precisa é de um terapeuta muito bom. O seu problema é de cabeça. Você não enxerga? Me diz uma coisa. O silicone na sua bunda vai fazer com que as pessoas queiram conversar contigo? Uma plástica na sua face vai te tornar uma pessoa mais apresentável e com isso sua vida vai dar uma guinada de 180 graus? Vamos fazer o seguinte. Nós nos separamos, você faz toda essa mudança física e vê se sua vida se torna mais feliz.

B: Ai Agnaldo! Você é um insensível. A felicidade não está apenas no conhecimento interior. Está também na forma com que nos apresentamos aos outros.

A: Não sabia que estava casado há vinte anos com um convite de casamento. Por favor, Berta. Você realmente agora conseguiu me tirar do sério! Você dizer que a sua suposta felicidade está na forma com que você se apresenta aos outros. Convenhamos!? Eu pensava que, pelo menos, você teria o bom-senso de dizer que está descontente com as partes do seu corpo, porque se elas fossem mais belas fariam você conviver melhor consigo mesma, não que você tenha de ser um cartão de boas-vindas para os outros.

B: Você não me respeita mesmo. Todas as vezes que falo dos meus desejos, você tem de desdenhar de mim. Isso porque você tem uma boa forma de argumentar.

A: Isso não é questão de boa argumentação. Isso é questão de massa de modelagem. Essa televisão é uma merda. Já fez toda a sua cabeça e você mal percebe. Pegou o seu cérebro e começou a modelar os seus desejos como se fosse uma massinha. Sabe aquelas massas infantis coloridas que comprávamos para os nossos filhos quando eram crianças? Então, pegaram o seu cérebro e modelaram, dando a ele novos desejos. Desejo de um corpo turbinadinho.

B: Agnaldo! A questão não é a televisão. A questão é que não estou feliz.

A: Bom...

B: Há muito tempo não tenho tempo pra mim. Trabalho, casa. Casa, trabalho. Você é tão auto-centrado que nem olhar direito pra mim olha mais. Fica imerso nos seus livros, paga parte das contas do nosso lar e quando coloco algum plano meu pra funcionar, vem você com seus argumentos críticos. Como se fosse o dono da razão. Nem posso acreditar que só pelo fato de eu ter falado em plástica, você sugeriu o divórcio...

A: Desculpe.

B: (silêncio)

A: Não tinha visto que a razão da plástica era tentar se comunicar comigo. Perdão.

B: Não é só se comunicar com você. É uma forma de eu fazer algo por mim. Eu vivo pra vocês. Os meninos, você, o trabalho na empresa e o trabalho doméstico. Não consigo nem lembrar a última vez em que eu fiz algo só pra mim. Todas as vezes que penso em fazer algo, coloco todas as possíveis variáveis da família em jogo.

A: (silêncio)

B: (choro)

C: Pai, você poderia me levar ao basquete? Mãe? O que aconteceu? Nunca te vi chorar...

A: Sua mãe apenas tá desabafando.

C: Então me leva ao basquete, pai!

A: Hoje não, meu filho. Volte para o quarto.

C: Mas pai...Sacanagem!

A: Vai para o quarto agora!

A e B: (silêncios cúmplices)