segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ainda, uma escolha


Lá estava uma velha porta feita de mogno escuro a sua frente. Temia abri-la e conhecer o outro lado. Sua intuição lhe dava a impressão de que por detrás daquela passagem algo de novo o esperava, por isso Seu Joaquim aguardava do lado de cá da madeira. Começou a observá-la detidamente. Percebeu que em cada traço do antigo tronco lapidado parte de sua memória habitava. Por meio dos riscos milenares - cavucados pelo tempo – ouvia vozes, avistava luzes. Entrou em transe subitamente. De repente, sua visão tornou-se turva e ele caminhou por um túnel. Observou sua própria história como um expectador.

Ali estava ele sentado no seu banco cativo da praça onze de São João do Brejo Velho. O nome da cidade era tão comprido, que todos a chamavam de Brejim.  Ele jogava diariamente todos os tipos de jogos: carteado, dominó, buraco. Sempre escondia um ás, um sete de copas, um três de espadas, um coringa e algumas pedras de dominó no bolso para usá-las no momento correto. Seu Joaquim era muito sagaz e rápido. Assim que as apostas acumulavam, utilizava suas artimanhas. Todavia, quando as apostas estavam baixas, fazia questão de perder, pois se vencesse a todo o momento poderia despertar nos companheiros de jogo uma pulga atrás da orelha.

Além do jogo, tinha prazer em conquistar todos a sua volta com seus causos. Mentia cotidianamente sobre sua história de vida. Agregava aos fatos reais, que compunham sua trajetória, informações retiradas de livros de aventuras que lia desde a infância. Cumpria uma função social naquela cidade: entreter os seus cidadãos. Contador de histórias dos bons seduzia a todos com sua habilidade de narrar fatos históricos sempre adicionando situações picantes e supostas intrigas de família. Uma vez conseguiu trilhar a história do Brasil desde a época do descobrimento, passando pela monarquia até chegar à república, apenas relatando histórias de bastidores. A população de Brejim passou a ter uma cultura ao avesso por causa de Seu Joaquim. Esse dom de narrar fez com que a praça, todos os dias, ao cair da tarde se tornasse o centro das atenções da cidade.

 Além disso, utilizava sua habilidade na arte da oratória para conquistar mulheres e persuadir os desatentos. Nesse cotidiano provocativo, ele acendia o fogo da paixão nas madames mais encasteladas da cidade e quando elas estavam completamente envolvidas, ele as dispensava sem o menor pudor. O seu prazer era aguçar nelas as partes de seus corpos nunca antes vasculhadas, além de fazer com que suas palavras fossem fonte de satisfação e luxúria. Saía desses casos de paixão assim que percebia o envolvimento, não porque era um mal sujeito, mas porque queria atiçar outras mulheres, devassá-las. Isso para ele era a tradução do que realmente seria viver. Quanto aos ingênuos, ele arrancava muito dinheiro e bens, esses ainda assim, continuavam convivendo com Seu Joaquim, pois sua companhia era viciante.

Naquele instante, Seu Joaquim sobrevoou sua vida toda e observou os bastidores de sua história. Achou graça de suas faceirices. Viu alguns dissabores que provocou com suas seduções descontroladas. Por fim, observou a praça repleta de pessoas querendo escutar suas histórias, mas ele não estava presente. Todos preocupados olhavam o relógio. Algumas amantes do passado enrugavam a testa a procura de uma resposta para o atraso de Seu Joaquim que sempre fora pontual. A cidade já tinha escurecido e ele não se encontrava lá. Começou a se indagar:

- Por que estou sobrevoando minha cidade e não consigo me comunicar com eles?

Acordou do transe. Permanecia em frente à porta escura de madeira milenar. Repentinamente, a porta se abriu e lá estava o Juízo Final dentro do elevador. O Juízo perguntou:

- Você quer descer ou subir? Não há volta!

- Seu doutor, gostaria de te dizer algo muito importante. Vamos até uma praça que fica aqui perto. Depois a gente volta e eu decido se subo ou desço. Só lhe peço isso: alguns minutos do seu tempo. O senhor não vai deixar de atender a um velho cidadão que não tem mais nada a perder, vai? – questionou Seu Joaquim.

O Juízo Final, meio desconfiado, atendeu ao seu pedido. Ambos foram à praça onze e o Juízo pela primeira vez entendeu o que era o verdadeiro prazer da vida: ouvir aquele velho prosador. Desde então, o Juízo Final habita Brejim e o elevador, transformador de seres humanos em almas, foi desativado.

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