domingo, 18 de dezembro de 2011

C'est la vie

Se não fosse daquele jeito estaríamos condensando nossas histórias, mas as dúvidas, medos, diferenças nos enfraqueceram e fizeram com que temêssemos o laço. Por deixar que tudo evoluísse para aquele fim, agora me sento sozinho nesse quarto, olho pela janela e vendo não enxergo. Adormeceu o corpo. Gelou a alma. Ainda assim o coração bate. Estar vivo sem querer. Como deixei chegar a esse ponto? Por que não persisti? A vaidade fez de mim esse ser perverso. A simples palavra que poderia reavivar as pontas dos fios que teciam a nossa caminhada comum não saiu da minha boca no momento certo. Como queria me transformar em Deus, rebobinar a história e começar tudo outra vez.
Passar e repassar a cena da discussão na cabeça. As pedras removidas do passado apenas para machucar o outro. Palavras ditas sem filtro. Como dói rememorar os gritos irracionais. Parece que, em alguns momentos da vida, deixamos os instintos tomarem conta do verbo. O animal que habita em nós é assustador. Remonta à pré-história. Passado o momento de fúria, a dor que nos humaniza estilhaça a alma. Quando se ama e se fere, logo depois vem a dor ácida do machucado feito no outro. O tiro de bala volta-se contra nós como bala de canhão. A vergonha me dominou.
Voltei-me para dentro do quarto. Minha perna tremendo, não sustentou meu corpo. Caí no chão. Pranto. Dor. Vômito. Frio. Cólica. Gritei: perdão! Não havia ninguém. Apenas eu e os móveis. Arrastei-me até o banheiro. Liguei o chuveiro a gás. Fechei a porta. Adormeci no box. Algum tempo passou. Abri os olhos assustado. Estava sufocando. Sem quase ar. Levantei rapidamente. Caí. Estiquei o braço. Alcancei a maçaneta. Consegui abrir a porta. Meus pés e minhas mãos estavam dormentes e roxos. Amedrontei-me. Comecei a chorar me sentindo patético. Pensei: como alguém pode ser tão ridículo? Perder a pessoa que ama e agora estar prestes a perder os pés e as mãos.  Depois do susto, passei a ter vontade de gargalhar, mas não conseguia. As gargalhadas não saiam, afinal o corpo me exigia ar e não podia doar oxigênio às minhas gargalhadas. Um filme da cena atabalhoada passava em minha mente. 
Ensopado, sem conseguir respirar direito, com o vapor do banheiro saindo desesperadamente pela porta recém-aberta, os pés e as mãos começaram a formigar. Sinal de que o sangue ainda circulava até as extremidades do corpo.   Suspirei aliviado: perdi a pessoa amada, mas todo o meu corpo havia sobrevivido. Aquele fato acalentara parte da minha angústia: não havia se esgotado a minha vontade de continuar seguindo em frente. O incidente trouxe-me a consciência de que fosse o que fosse ainda estava ali. Troquei a roupa molhada por uma seca, peguei um rodo e um pano, enxuguei o banheiro, limpei o vômito, ainda assim a sensação de vazio permanecia. Organizar o apartamento não foi suficiente para que o buraco se preenchesse.
Quando se ama, o medo de perder a pessoa amada paralisa em parte o que somos. Podamos as arestas, sem perdermos a essência, para poder perpetuar o contato. Podei-me por muitos anos, para que a relação pudesse se estirar no tempo. Parte do que eu era, agora mais não sou. Mas não fui eu apenas o ser transformado no ser atual, ela também fizera a sua parte para caminharmos juntos. Sempre se tem que ceder para poder conviver. Esse é o preço que se paga para estar com o outro. Para viver em sociedade. Para construir relações profundas.
Em que momento tudo começou a se revirar em nossas vidas e começamos a nos maltratar em palavras? Não sabia responder a essa pergunta. Tudo ainda estava recente. Os cheiros, os paladares, os olhares. O frescor da separação deixara a dor. Este sofrimento não me permitia limpar a poeira, para ver com clareza as circunstâncias que contribuíram para se chegar àquele fim.
A campainha tocou. Meu coração latejou. Será que era ela? Conversaríamos outra vez? Mais uma chance se abriria? Lá estava o olho mágico que desvendaria o mistério. Olhei pelo buraco.  Era a Dona Geni, vizinha de porta. A expectativa desmanchou-se. Abri a porta. Dona Geni me olhou assustada. Perguntou: 
- O que há contigo meu jovem? Fiquei sem responder. Ela concluiu: 
- A Clô foi embora? 
Meu rosto confirmou. Ela perguntou se podia se sentar e contar uma história. Disse-lhe que gostaria de ficar sozinho naquele momento. Mesmo assim disse:
- Tem vezes que a gente se sente como se nos tivéssemos perdido, mas na verdade nos encontramos.
Ela saiu, sem dizer o motivo que a levara até minha casa. Creio que pediria um pouco de açúcar ou de farinha ou algum legume. Muitas vezes, ela nos pedia alguns ingredientes para finalizar a receita de uma torta ou de um cozido. Assim que ela terminava de preparar os pratos, vinha com um bocado para que pudéssemos experimentar. Acredito que aquele ato trazia o real sentido de vizinhança. Ela gostava de se sentir em comunidade. Essas trocas nos enredavam numa relação de amizade e o sentido de pertencimento e solidariedade era aprofundado.
A frase de Dona Geni martelava em minha cabeça, mas não fazia sentido. Só depois de alguns anos a compreendi.

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