quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A coisa

          Jarbas naquele momento não conseguia parar de falar e nos seus esquecimentos vinha sempre a palavra ‘coisa’ tapando os vazios das falhas vocabulares. Suas entonações juntamente com o contexto faziam com que nós o compreendêssemos. Falava de política, mas como a afoiteza era tamanha pelo fato de sentir-se baleado pelos votos recebidos pelo adversário de seu candidato, lá vinha a palavra ‘coisa’ em seu auxílio. Ela o fazia sentir-se confortável. Era aquilo que lhe faltava, para permitir sua navegação na construção argumentativa de seu ponto de vista.

Foi entre uma ´coisa’ e outra esbravejada por ele, que percebi como essa palavra nos ajuda, visto ser ao mesmo tempo o nada e o tudo.  Preenche os vazios. Permite transformar o silêncio do esquecimento em um show de contorcionismo em busca da palavra correta para se poder continuar o diálogo. Como já dizia o poeta: “há tanta coisa entre o céu e o mar.” Dela nos servimos, dela nos safamos de maus bocados. Com ela permitimo-nos sair e devorar o esquecimento.

Voltando ao papo do Jarbas. Após alguns minutos, o atropelo de suas palavras deu espaço a uma serenidade. A palavra ‘coisa’ foi dando, aos poucos, espaço às palavras precisas e fez com que as expressões faciais e gestuais agressivas fossem se transformando em simples movimentos, pois afinal, aquelas palavras não precisavam ser explicadas, elas por si só permitiam a compreensão.

Foi nesse momento que me veio à mente. Como deve ser difícil para uma pessoa que não sabe ler e escrever ser compreendida. Em seguida me corrigi, a linguagem é viva, não se precisa de construções rebuscadas para serem passíveis de compreensão. Novamente, voltei e me questionei. E os sentimentos profundos podem ser descritos sem a percepção dos diversos significados das palavras? Fiquei pensando por muito tempo e, nesse ínterim, Jarbas já tinha passado uma hora falando sem que permitisse a intromissão de qualquer pessoa em sua fala.

Aquele momento era para ele uma catarse das escolhas do povo brasileiro. Como a sociedade não o podia escutar, visto ser ele um simples profissional liberal que todo o dia vai ao seu trabalho, paga os impostos em dia e é explorado até 21h, sem que seu patrão contabilize as horas extras trabalhadas. Então cabia, naquele instante, a nós, amigos, a escuta de suas frustrações quanto às eleições. Nesse momento parei para tentar prestar atenção a suas argumentações, dizia ele:

Os rituais diários fazem parte de qualquer vida comum. Todo dia um ciclo, todo ano um ciclo. A vida em círculos e de quatro em quatro anos mais uma escolha por um “novo” projeto de país, ou o mesmo com novas roupagens. Parece que hoje os projetos de governo se transformaram em um só apenas. Os ideais se uniformizaram, não sei se isso se deve a um amadurecimento democrático ou se deve à vontade de poder em que qualquer projeto deve contemplar o que a massa quer. E, com isso, vai se maquiando os programas de governo aqui e acolá para se tentar angariar o maior número de votos. A descrença na política é enorme. Os absurdos são inúmeros. Eu chego até o século XXI descrente totalmente de mudanças e transformações, esses políticos  pasteurizados em suas plataformas um tanto quanto artificiais...

E por aí o Jarbas continuava seu discurso. Era o sujeito mais descontente que já conheci. Para ele, a política não tinha mais solução. Os ideais morreram e não se tinha como ressuscitá-los. Não consegui continuar a escutá-lo, pois me instigava a questão quanto aos sentimentos profundos serem possíveis de serem racionalizados sem o conhecimento da teia inumerável de palavras que contempla a língua portuguesa. Pensei, pensei, pensei. E, sem conseguir uma resposta final, cheguei à seguinte prévia percepção intuitiva. Sentir, todo mundo sente, expressar nem todos conseguem. Pessoas irracionais são irracionais independentemente de palavras. Sentimentos profundos? O que é isso? A dor pela perda de um filho? A dor pela perda de um amor? A paixão? Isso todos sentimos.  A compreensão da dor e sua exteriorização e a palavra se cruzam e se descruzam, mas não se determinam.

            Minha cabeça sem saber ao certo em que ponto esse questionamento poderia desembocar, parei de pensar e saí do meu mundo. Foi, então, que ouvi o Jarbas deixar alguém, finalmente, falar, mas só depois de dizer: O Brasil é uma coisa!

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