sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Conversa de interiores


“Sendo quem é não me surpreendo ao vê-lo passar com aquela mulher que parece ser sua mãe,” pensava dona Doca ao ver um de seus vizinhos caminhar acompanhado na outra extremidade da calçada. O “trintagenário” a olhava com cara de cachorro no cio, acenava com um sorriso provocativo e seguia com a sua acompanhante. Logo em seguida, apareceu Seu João na esquina repleto de coleiras em suas mãos, guiando cerca de cinco cachorros para o passeio matinal. E logo a cabeça de dona Doca se pôs a refletir: “Lá vem esse senhor diariamente distribuir fezes de cachorro pela vizinhança, como se a merda fedorenta desses cães adubasse o asfalto. Incrível a falta de bom senso desse velho gagá. Ajuda a todos caminhando com os cães alheios. O bairro inteiro o tem em consideração pelo fato de prestar esses pequenos favores, mas já que ele tem boa vontade deveria fazer o serviço completo: parar toda vez que um defecasse para recolher a bosta”.

Seu João dirigiu-se para perto da casa de dona Doca, olhou para o alto e disse:

- Venha passear um pouco e sair da mesmice dessa varanda, a senhora fica com uma vista nos seus livros e a outra na calçada. Tem de sair um pouco desse ângulo da vida, para ver outros. Todos os dias faço um caminho diferente com os cães. Acabo passando por situações inusitadas e interessantes. A senhora deveria vivenciar outras paisagens de vez em quando.

- Não preciso sair da minha varanda para viver coisas novas, os livros me saciam do novo. – respondeu dona Doca.

- Mas as palavras escritas são insuficientes para lhe dar vida, ora bolas. A vida é construída no contato com outras pessoas, animais...

- Principalmente, quando eu caminho pela rua e entro em contato com as fezes dos cães que o senhor distribui pelas calçadas, é um contato tão intenso e maravilhoso com a vida. Realmente, o senhor sabe garimpar vida no asfalto das praças...

- Hoje tem gente azeda na varanda, chega estala a minha boca com o amargor que brota das suas palavras.

- Hum... O senhor está poético: amargor que brota das minhas palavras (riso irônico). Se alguma pessoa não se ofendesse com as verdades que eu tenho a dizer, não se dirigiria a minha varanda, pois de mim só sai palavras autênticas, não vim ao mundo para agradar os outros com a falsidade que transborda dos que caminham pelas calçadas, estou aqui para dizer o que observo: no caso do senhor, distribuir fezes de cachorro pela rua fere todos os princípios de civilidade.  

Seguiu Seu João cabisbaixo com os cães. No dia seguinte, lá estava ele com os sacos de plástico de supermercado, catando as fezes dos cães. Dona Doca ao ver a cena, comoveu-se, e mesmo assim, pôs-se a ler o livro que trazia às mãos, fingindo não se dar conta da mudança de postura do vizinho. Quando ele chegou bem perto da varanda, ela amoleceu a sua dureza característica que teimava em persistir traduzida pelo silêncio e fez o comentário, sem transparecer nenhum traço de emoção no rosto:

- Parabéns, seu João.

Ele a olhou, acenou aliviado e seguiu seu rumo. No mesmo instante, duas moças andando lentamente conversavam descontraídas e uma delas dizia:

- Só tive dois amores na vida e os vivi intensamente, quando acabaram as dores foram piores do que se tivesse levado uma surra e me tivessem quebrado todos os dentes, no mais foram paixões que pipocaram aqui e acolá, assim como a pipoca estoura nos iluminando com o seu sabor, a digerimos facilmente e rapidamente...

O restante da conversa não pôde ser ouvido, porque as moças se afastaram. Dona Doca então pensou: “essa seria uma conversa da qual gostaria de participar”.

Voltou ao seu livro e adentrou na vida dos personagens. A história era tão instigante que por duas horas seguidas não se deu conta do que se passava na calçada. Saiu da varanda, comeu algo na cozinha, foi ao banheiro, tomou banho, voltou à varanda com a máquina fotográfica nas mãos para tirar uma foto do mesmo lugar que há vinte anos fixava sua câmera, para registrar as cenas do mesmo ângulo. O que modificava naquelas imagens diárias era a presença de transeuntes com suas emoções ou a ausência deles, a luz, o tempo. Todo o dia, às dezoito horas, buscava sua polaróide, que ao mesmo tempo em que a foto era tirada também era revelada. Datava a foto e a recolhia aos álbuns identificados por ano e dia. Esse era o único ritual que não admitia faltar em sua rotina. Era por causa dele que ela não viajava para conhecer outros países ou o seu próprio país, não visitava ninguém e não aceitava visitas nesse horário. Talvez fosse por isso que se apegava tanto aos livros. As descrições de diferentes lugares lhe permitiam construir outras cidades. Os autores a faziam viajar e acrescentar às descrições pontos imaginados por sua leitura. Isso porque ela sentia que se não fotografasse as cenas cotidianas sob o mesmo ângulo e horário, a vida não faria mais sentido.

Um dia foi ao médico no início da tarde e logo após a consulta, no caminho de volta, entrou em um sebo de livros raros e acabou perdendo a noção do tempo. Deparou-se com livros que sempre tivera vontade de ler, mas pelo fato de as edições antigas já terem se esgotado, não conseguira até então entrar em contato com aquelas obras. Ficou se deliciando com inúmeros livros, selecionou alguns e os pagou. Somente quando estava saindo do sebo observou o relógio. Quando viu que se aproximava o horário da foto, entrou em pânico. Parecia que parte da sua essência iria se desmanchar caso não chegasse a sua casa a tempo para fotografar a cena do cantinho de sua varanda. Saiu correndo, tomou um taxi, separou a quantia a ser paga no trajeto, pediu para que o taxista se apressasse, pagou, pôs-se a correr até sua casa, esbarrou em várias pessoas, subiu as escadas e já com dor de veado alcançou sua porta, pegou a câmera e esbaforida posicionou a máquina no mesmo lugar de sempre e clicou, pontualmente no horário. Chorando, manchou a foto recém saída da máquina.

Sentou-se na rede e se debulhou em lágrimas. Parecia que aquele momento de exacerbação do desespero e a conquista do importante objetivo acabaram por trazer à superfície opressões outras que transbordavam para além de uma simples captura de imagem. Mas, antes que pudesse reconhecer os motivos do seu choro intenso, uma atriz famosa atravessava a rua com sua filha gritando:

- Mana Schiva, pare de sair correndo sem me dar a mão, os carros podem te atropelar!

Dona Doca não se conteve, enxugou as lágrimas e perguntou:

- Ei, você aí!

A atriz virou-se, olhou para cima e então disse:

- A senhora está falando comigo?

- Sim, estou. Gostaria de saber se o nome da sua filha é realmente Mana Schiva – questionou dona Doca.

- Sim, senhora.

- Mas você não acha que sua filha não poderia ter um nome menos esquisito? Não sei o que se passa pela cabeça de vocês, artistas, parece que querem que seus filhos já nasçam com um suposto nome artístico. Oras, e se eles não quiserem ser artistas? Terão de carregar esse fardo pelo resto de suas vidas? Você nasceu com o nome de Maria Silva, depois que começou sua carreira artística mudou seu nome para Eva Viño. Primeiro: no Brasil não existe esse til em cima do n, isso só existe na língua espanhola. Segundo: nunca entendi essas mudanças de nome, é só para dar um ar de internacionalidade?

A atriz virou-se, pediu para a criança ir caminhando e levantou o dedo médio para a dona Doca. Esta, por sua vez, começou a gargalhar:

- Acho que depois dessa conversa, você vai pensar duas vezes antes de colocar um nome artístico no próximo filho que você tiver – concluiu.

Nesse momento, toda a circunstância de desespero tinha se diluído. A vida dos transeuntes e a compra de novos livros tão desejados trouxeram-lhe paz suficiente para derreter a instabilidade de quase não conseguir tirar a foto com a pontualidade de sempre. A varanda, lugar onde mais poderia se encontrar dona Doca, trazia a leveza e a familiaridade reconfortante para enfrentar a passagem do tempo. Deitou-se na rede, olhou o céu, o final de tarde proporcionava uma mistura de cores, as nuvens traziam o laranja, o rosa, o violeta e um dourado singular. Estava tão maravilhada com aquele espetáculo, que dona Doca pela primeira vez percebeu-se pequena como se fosse uma formiga diante da imensidão das maravilhas que a natureza apresentava.

Enquanto isso uns violeiros começavam a se posicionar na sacada da casa do outro lado da rua. Todas as sextas se reuniam para tocar: sambas, bossas, choros. Naquela noite principiaram com uma bossa que nunca haviam tocado antes. A letra da música adentrava a alma de dona Doca e trazia lembranças doídas de duas décadas atrás. A canção vinha suave: A insensatez que você fez/Coração mais sem cuidado/Fez chorar de dor/O seu amor/Um amor tão delicado/Ah, porque você foi fraco assim/Assim tão desalmado/Ah, meu coração que nunca amou/ Não merece ser amado/ Vai meu coração ouve a razão/Usa só sinceridade/Quem semeia vento, diz a razão/ Colhe sempre tempestade/Vai, meu coração pede perdão/Perdão apaixonado/Vai porque quem não/Pede perdão/ Não é nunca perdoado.

Dona Doca foi tomada por uma melancolia profunda. Sentia-se vazia ouvindo a letra e a melodia daquela canção. Trazia aquela música, recordações do momento mais vivaz de sua trajetória. Aquele em que tinha se apaixonado, mas que por causa de sua severidade se desmanchara. A lembrança daquela história seria apenas mais uma foto que ela colecionava, mas essa imagem não a tinha em papel. A canção falava muito bem do seu apego ao vento que ela colhera e fizera dos momentos em que estiveram juntos tempestades de ciúme, de um amor doentio, que procurava na obsessão uma forma de traduzir sentimento. O amor foi transformado em orgulho. O orgulho, em rancor. O rancor, em adeus.  

A próxima canção cantada pelos violeiros foi um samba de Cartola e Elton Medeiros: A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/ Eu vi a mocidade/ Perdida/ Fim da tempestade/ O sol nascerá/ Fim desta saudade/ Hei de ter outro alguém para amar/ A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/Eu vi a mocidade/ Perdida. Essa trazia uma mensagem de esperança da qual nunca teve. Entendeu que as canções e os livros serviam a ela de grandes aliados para enfrentar o tempo. Uma ansiedade a tomou, seu coração começou a bater muito forte, veio uma dor aguda, as pontas de seus dedos dos pés e das mãos formigavam de forma que não conseguia movê-los. Sua visão tornou-se turva. Passou a não escutar.

As canções continuaram. Apenas a varanda não mais as vivenciavam. 

(texto publicado pela Revista Meiaum, n. 8, novembro de 2011)

3 comentários:

  1. Hanna, indiquei seu blog à Mery, porque tenho certeza de que ela vai adorar. Da mesma forma, acho que você também vai gostar do blog dela:
    http://never-without-you-h.blogspot.com/

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  2. Olá, que historinha legal, essa dona Doca* é hilária, adorei, viu...!
    Me deu vontade de ter uma varanda e viver com toda a simplicidade dela a brincar com os que passam "com uma certa ironia"; bem poderia ser personagem de uma novela, daria Ibope, com certeza. Final triste, mas viveu* entre livros e canções, e a sua varanda..."intensamente? Não. Penso que fez uma utopia" de sua vida...Sei não!
    Venho te ler sempre, adoro blog assim com histórias pitorescas, tô seguindo; sou amiga da Ju, essa danada não comenta no meu blog, é verdade, mas eu vou lá e sempre que posso, mando um recado.
    Adorei vir aqui, te desejo um feliz 2012"!
    Saúde e PAZ!
    beijinho, Mery*)

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  3. Dona Hanna, você é a mesma Hanna que conhecemos na confraternização da MeiaUm no mercado?

    Abração.
    Rebêlo.

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