quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Decantar

Josefina caminhava pela rua com uma sensação estranha. Sentimento de vazio. O dia encontrava-se acinzentado: a rua, os carros, o céu grafitado pela poluição, os vidros das janelas do centro comercial sujos. As pessoas que circulavam pela rua não a olhavam. O tempo corria apressado como sempre. Naquela quinta-feira, Josefina saíra do trabalho sem dizer uma palavra. Sentia a vida descompassada, sem o elo que liga um dia ao outro. Não sabia se aquele tempo sem cor contribuía para o sentimento do nada-interior ou se, na verdade, o mundo não tinha propósito de existir.
Parou na rua em que havia um cruzamento. Os carros transitavam sem dar oportunidade aos pedestres para a travessia. Eis que José, um amigo de infância, parou seu fusquinha amarelo quando o semáforo avermelhou-se. Naquele instante, ela o observou com a boca entreaberta, como se aquela cena decorresse de um inusitado acaso. Havia anos que não o via. Agora, ele se encontrava com uma barba comprida e algumas marcas da idade gravadas em seu rosto. Ao iniciar a passagem de um lado ao outro da rua, Josefina o olhava fixamente, acenou sem medo de não ser reconhecida. Seu gesto foi involuntário. José, então, disse em voz alta para que ela o pudesse escutar: na nossa infância, você foi meu amor platônico.
Ela desnorteada correu para o outro lado da rua, pois o semáforo já se esverdeara. José, por outro lado, permanecia parado a observando caminhar a passos largos, as buzinas começaram a soar de forma ensurdecedora. Ele despertou do transe e continuou seu caminho. Josefina, por sua vez, parou na esquina da rua e uma sensação de que a vida estava fora do eixo a dominou. Sentiu vontade de vomitar, mas mesmo assim se virou para continuar a caminhada. No mesmo instante, um vidro que se soltou do prédio em construção caiu a sua frente e se espatifou na calçada. Os cacos penetraram sua pele, mas ela não sentia dor. Apenas olhava o sangue escorrer por sua perna. Aquele vermelho escuro se confundia com sua pele negra fazendo com que a derme se escurecesse ainda mais. Via beleza no formato das gotas que brotavam dos cortes.
Naquele momento, uma senhora com um rosto familiar aproximou-se, pegou um lenço em sua bolsa, olhou-a com afetuosidade, pediu-lhe licença e começou a limpar os ferimentos. Aquele gesto trouxe-lhe paz, parecia que o sopro de alguma divindade trouxera o ser altruísta que transbordava carinho.  Gesto que lhe fortaleceu o corpo para continuar a andança. Josefina caminhou mais duas quadras, em seguida virou na esquina. Andou mais três quadras e se deparou com o mar. Mas o mar havia se afunilado. Era como se as ondas que estavam a bater na areia tivessem uma amplitude infinita, mas à medida que o mar caminhava para a imensidão ele se estreitava, fazendo com que o horizonte se transformasse em um buraco.
Josefina sentiu uma vontade tremenda de mergulhar no mar, enfrentar as ondas e nadar até o ponto negro que se formava no horizonte. Começou a se despir. Primeiro retirou o casaco. Até então os transeuntes não a observavam. Depois retirou a blusa. Em seguida, as calças. Começaram a olhá-la. Quando desabotoou o sutiã, uma voz conhecida gritou ao longe: não! Era seu chefe. Um senhor de oitenta anos, redator-chefe do jornal em que ela era jornalista. Um humanista convicto, idealista e sedutor.
Em seguida outros gritaram: depravada! Outros contribuíram gritando: Suicida! Alguns, junto com ela, começaram a tirar a roupa. Em torno de dez pessoas ficaram nuas na praia. Josefina não virou o rosto, apenas sabia pelos murmúrios e cochichos que estava sendo observada por centenas de pessoas e que entre elas se encontrava seu chefe. Aquela sensação de vazio que sentira ao sair do trabalho se transformara em felicidade plena. Agora sua vida tinha propósito: saber o que tinha por de trás daquele funil.
Saiu correndo. Furou várias ondas. O mar estava puxando muito. A correnteza contribuía para que Josefina chegasse com rapidez ao funil, pois era como se a maré estivesse baixando a cada segundo. Mergulhou e com os olhos turvos observou a natureza marinha. Como era calmo e tranqüilo aquele momento. Estava se sentindo em paz consigo e com o mundo. Tudo fazia sentido. Tudo era vida plena de significado. As cores avivaram no fundo do mar. O cinza da cidade em que se encontrava foi substituído pelo o azul do mar, o verde das algas, o vermelho dos corais e as múltiplas cores dos seres vivos que habitavam aquele lugar.
Chegou ao funil.... Zummmm...De repente, Jozefina virara semente, começou a penetrar a terra. Aos poucos, foi vasculhando a crosta terrestre até alcançar o magma. Morno, quente, pelando. Chegou ao centro da vida.  Ahhhhhhhhhhhhhhhhh... Josefina abriu os olhos, viu o armário, o quarto encontrava-se ainda escuro com os primeiros raios do amanhecer adentrando pela janela. A aventura não passava de um sonho.

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