sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A dois


A: Você quer se sentir bonita? Basta se rodear de pessoas feias e você conseguirá seu objetivo!

B: Credo! Você é tão ríspido! Parece que não tem paciência para uma simples conversa entre pessoas civilizadas!

A: Pelo amor de Deus! Eu não agüento mais esse papo de que sua bunda não é dura, sua perna é cheia de celulite, de que seus traços do rosto não são perfeitos. Todos estamos envelhecendo e esse é o preço que se paga por viver mais. A bunda cair, o braço ficar molenga, o rosto ficar repleto de marcas de expressão, o cabelo embranquecer. E por aí vai.

B: Por mais que esse seja o preço, eu bem que queria ser rica pra utilizar os artifícios científicos para postergar a passagem do tempo.

A: Berta, pelo amor de Deus! O que você precisa é de um terapeuta muito bom. O seu problema é de cabeça. Você não enxerga? Me diz uma coisa. O silicone na sua bunda vai fazer com que as pessoas queiram conversar contigo? Uma plástica na sua face vai te tornar uma pessoa mais apresentável e com isso sua vida vai dar uma guinada de 180 graus? Vamos fazer o seguinte. Nós nos separamos, você faz toda essa mudança física e vê se sua vida se torna mais feliz.

B: Ai Agnaldo! Você é um insensível. A felicidade não está apenas no conhecimento interior. Está também na forma com que nos apresentamos aos outros.

A: Não sabia que estava casado há vinte anos com um convite de casamento. Por favor, Berta. Você realmente agora conseguiu me tirar do sério! Você dizer que a sua suposta felicidade está na forma com que você se apresenta aos outros. Convenhamos!? Eu pensava que, pelo menos, você teria o bom-senso de dizer que está descontente com as partes do seu corpo, porque se elas fossem mais belas fariam você conviver melhor consigo mesma, não que você tenha de ser um cartão de boas-vindas para os outros.

B: Você não me respeita mesmo. Todas as vezes que falo dos meus desejos, você tem de desdenhar de mim. Isso porque você tem uma boa forma de argumentar.

A: Isso não é questão de boa argumentação. Isso é questão de massa de modelagem. Essa televisão é uma merda. Já fez toda a sua cabeça e você mal percebe. Pegou o seu cérebro e começou a modelar os seus desejos como se fosse uma massinha. Sabe aquelas massas infantis coloridas que comprávamos para os nossos filhos quando eram crianças? Então, pegaram o seu cérebro e modelaram, dando a ele novos desejos. Desejo de um corpo turbinadinho.

B: Agnaldo! A questão não é a televisão. A questão é que não estou feliz.

A: Bom...

B: Há muito tempo não tenho tempo pra mim. Trabalho, casa. Casa, trabalho. Você é tão auto-centrado que nem olhar direito pra mim olha mais. Fica imerso nos seus livros, paga parte das contas do nosso lar e quando coloco algum plano meu pra funcionar, vem você com seus argumentos críticos. Como se fosse o dono da razão. Nem posso acreditar que só pelo fato de eu ter falado em plástica, você sugeriu o divórcio...

A: Desculpe.

B: (silêncio)

A: Não tinha visto que a razão da plástica era tentar se comunicar comigo. Perdão.

B: Não é só se comunicar com você. É uma forma de eu fazer algo por mim. Eu vivo pra vocês. Os meninos, você, o trabalho na empresa e o trabalho doméstico. Não consigo nem lembrar a última vez em que eu fiz algo só pra mim. Todas as vezes que penso em fazer algo, coloco todas as possíveis variáveis da família em jogo.

A: (silêncio)

B: (choro)

C: Pai, você poderia me levar ao basquete? Mãe? O que aconteceu? Nunca te vi chorar...

A: Sua mãe apenas tá desabafando.

C: Então me leva ao basquete, pai!

A: Hoje não, meu filho. Volte para o quarto.

C: Mas pai...Sacanagem!

A: Vai para o quarto agora!

A e B: (silêncios cúmplices)

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