sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Fagositose de seres

               Grama cor de areia, árvores sem folhas, céu esfumaçado, ar sem quase moléculas de água. Cenário de interior. Distante do mar, distante de rios caudalosos. Os segundos não são contados nesse lugar. Não existem contadores de tempo. Apenas o sol e a lua permitem compreender que há ciclos se passando. O mais leve zunido é escutado. Televisão ali não há, rádio também não.  Nenhuma caixa que transmita som é encontrada dentro do vale onde está incrustado o povoado circundado por montanhas de cumes altos. Os sons advêm da natureza, dos instrumentos de sopro que estão lá há muitos ciclos: clarinetas, flautins, flautas, oboés, fagotes, saxofones, trompas, trompetes, trombones, tubas. De resto, os barulhos são construídos pela prosa fertilizada com as nuances da vida e dos causos contados pelos habitantes do local.

               Em torno dos sons harmônicos encontra-se a alma do lugar. As músicas compostas e apresentadas pela orquestra de sopro desvelam a essência do povoado. Diariamente, quando a noite se inicia, os músicos reúnem-se ao ar livre em algum canto da cidade. São levados aos diferentes locais intuitivamente e da mesma forma compõem a música diária. Captam as palavras e as entonações expressadas por cada habitante, como se tivessem canais invisíveis que transmitissem o pensamento dos cidadãos até seus sentidos. A cada dia conjugam os sentimentos absorvidos e os evidenciam em forma de notas e acordes. Drama, ironia, suspense, felicidade, temor e tantos outros.

O regente da orquestra encontra-se em cada habitante, não havendo a personificação de um sujeito com uma batuta na mão. O som das composições reverbera nas montanhas e de qualquer lugar do vale escuta-se a música, o que provoca nos habitantes a sensação nítida do que cada um vivenciou naquele dia. Isso faz com que o falatório sobre a vida uns dos outros não seja necessário. No início da noite, cada pessoa se enxerga por dentro. Compreendem-se mutuamente e percebem a complexidade dos sentimentos e suas contradições. Nessa medida, o pré-julgamento é dissolvido, pois o desconhecido se revela ao simples acorde dos sopros musicais. Há a compreensão de si e dos outros. Cada nota tocada adentra no espírito dos indivíduos, instigando-os. A música percorre túneis escuros iluminando-os.

Aquele lugar contorce os eixos dos trilhos da história. Lá os relatos não são armazenados por um tempo reto, porque o calendário não alcançou aqueles cidadãos. Os causos são acumulados pelas gerações a partir da noção de ciclos. O nascer, o crescer e o morrer. Nesse meio tempo onde a vida brota e se esvai situações vão acontecendo. Das circunstâncias corriqueiras, algumas são escolhidas como marcantes. Outras são afastadas. Mas por que as histórias que se eternizam no tempo e são passadas de geração em geração são escolhidas? Entre um ciclo e outro, pessoas capazes de selecionar fatos e contá-los com maior perspicácia persuadem os outros de que as histórias escolhidas são importantes.

Muitas dessas pessoas são sábias, outras sagazes. Têm a habilidade de selecionar as palavras mais contundentes para transmitir os pensamentos. Conseguem retratar as histórias a partir de uma visão crítica e de um olhar mágico. Aliam a realidade à fantasia - mas não sabem ao certo até onde a fantasia é verdade e até onde a realidade é ficção - de forma a dar encantamento aos relatos, a apreender a atenção dos sujeitos e a fazer com que os corpos daqueles que escutam e vêem se contorçam pelo riso ou se espantem pelos desdobramentos dos relatos. Preenchem o tempo das crianças e dos adultos com suas invencionices-reais e com seus fatos-encantados.

Daquele povoado, as pessoas nunca saíram, em parte porque não queriam ter o trabalho de escalar as montanhas que rodeavam o lugar, em parte porque acreditavam nas histórias relatadas pelos sábios e continuavam cultivando o laço que dava identidade a cada indivíduo. Os sábios diziam que as montanhas traziam consigo o elemento mais caótico de todos os sentimentos humanos – o contraponto. Escalando aqueles elevados de terra e rocha, os aventureiros poderiam alcançar o outro lado do pensamento. Aquele lado do qual ninguém nunca disse e somente poderá dizer até que alguém suba as montanhas e veja o que há por detrás delas. Para tanto, paga-se o preço – a travessia – caminhar pelo desconhecido não é tarefa pacífica. Desapegar-se da tranqüilidade advinda da música sublime e das palavras contadas com tanta perspicácia, não é uma escolha qualquer.

Até aquele momento todos continuavam na trajetória da consolidação da unidade. Era como se fagocitassem uns aos outros. Olhar a rotina com ares de novidade. O desafio cotidiano de lidar com os dias e as noites de forma diversificada e divertida lhes bastava. O aconchego do povoado era tão bom. A preguiça de se debruçar em busca de conhecer o tal ‘contraponto’ era tamanha que a travessia tornava-se algo pequeno diante do ritmo que o cotidiano mágico lhes proporcionava.

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