quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

No fio da navalha

Havia algum tempo que estavam naquela posição, detinham-se ali, pois ao menor sinal de movimento do outro o valor vida estaria em risco. Perturbados encontravam-se, sem saberem o que se passava pela cabeça do outro. Os sentidos os faziam inteiramente presentes. Analisavam-se mutuamente. Pareciam animais em busca do ataque final, para se servirem do banquete. Chegaram àquela situação de forma obtusa, era como se o horizonte das escolhas em suas vidas houvesse se estreitado de forma irreversível. Sabiam que, ou entravam em consenso, ou algum dos dois sairia morto, ou ambos. Mas como confiar em sujeitos que portavam facas e que não tinham históricos de vida dignos de confiança?
Aos poucos, seus corpos foram ganhando pêlos, um transformou-se em tigre, o outro em jegue. Um era a caça, o outro o caçador. Não tinham para onde correr, pois estavam presos em uma sala fechada sem janelas, mas a razão humana perpetuava-se em ambos. As facas, que traziam consigo, caíram ao chão após a metamorfose. Permaneciam paralisados à espreita. Foi então que o sujeito que se transformara em tigre se apercebeu do seu poder. Suas feições principiaram a se configurar diante da nova realidade. O temor incorporou-se ao jegue, não conseguia se mover. Sabia que a morte estava próxima, visto não ter como se defender. Não tinha como argumentar algo, pois de humano somente restou a ele a essência; a possibilidade de articular as idéias pelos sentidos foi-lhe retirada.
Contudo, o tigre não conseguia atacar o jegue, pois aquele animal traduzia parte de sua identidade. Desde criança, o jegue era cultuado como animal sagrado no vilarejo onde começou sua vida. O homem entigrezado havia nascido em uma região árida e seu povo sofria com a seca perversa, então via no jegue a imagem da fortaleza, o alicerce para a sobrevivência. O animal inofensivo conseguia avançar pela terra empoeirada e desbravá-la em busca de água de beber e de cultivar o sertão. Assim, quedava o tigre apenas avistando afetuosamente o jegue. Em tal paralisia dos dois animais, alguma coisa atormentava o animal indefeso, que se questionava sobre o porquê de o tigre sabendo de seu poder não fazer nada contra ele.
Após algum momento, uma gosma começou a sair da pele de ambos. Um virou cobra, o outro rato. A relação de poder havia se invertido. O antigo jegue transformou-se em cobra e o tigre em rato. Nesse instante, o homem encobraiado começou a rememorar uma fase obscura de sua história - o terror que havia vivenciado enclausurado em um cubículo na época da ditadura militar. Os horrores daquele período começaram a emergir de sua memória, pois os únicos barulhos que ouvia eram de gritos desesperados dos companheiros de luta, os tiros de fuzil e os ruídos dos ratos. Naquele período, os ratos traduziam-se na base para a perpetuação de sua vida.
Imaginava, durante os anos em que estivera trancafiado, que enquanto existissem ratos, existiria vida. Aquele pensamento dava-lhe força, para que permanecesse em um estado precário de sanidade. Não podia entrar em contato com outro ser humano, a não ser os militares que vinham de quando em quando, mas esses equivaliam a nada, pois eram impiedosos. Arrancavam-lhe as unhas, queimavam-no com pontas de cigarro, para que delatasse os outros companheiros, mas nessas horas, só pensava no rato. Era o animal que o enrijecia para fortalecer-lhe o espírito e não abrir a boca nas sessões de terror. O Estado era a síntese da degradação humana, as mentes que divergiam do sistema eram achatadas, calcificadas, já os ratos eram a síntese da vida. Era o elo entre ele e o mundo, reconfortando-o.
Nesse ínterim, a cobra não conseguia mover-se em direção ao rato. Matá-lo estava fora de cogitação. Havia um laço histórico que o detinha ali, sem se aproximar do rato. Uma amizade que se transportou até o momento do encontro com aquele sujeito que portava uma faca e agora havia se transubstanciado naquele animal tão familiar. Por outro lado, o rato amedrontava-se ouvindo o chacoalhar da calda da cobra, sentia-se impotente e não entendia qual era o motivo que fazia a cobra não se mover em sua direção. Apenas começava a compreender que no mundo animal, a luta pela sobrevivência não se distanciava tanto assim do mundo humano, pois tudo era uma questão da lei do mais forte.
Em seguida, um vendaval trouxe os uivos do vento que batia nas paredes e no telhado do lugar sem janelas. Lentamente, o telhado foi se desmanchando e a areia caindo sobre a cobra e o rato. No mesmo instante, os corpos dos animais foram se metamorfoseando em diversos outros animais. Um assistia ao corpo do outro e observavam as belas modificações provocadas pelas transformações. Até que se viram parados diante de uma imensidão de areia, pois a casa onde se encontravam havia virado pó e se misturado ao tapete bege do deserto. Os sujeitos, depois de alguns minutos, voltaram ao seu estado inicial, entreolharam-se maravilhados, miraram as facas, mas subitamente, seus corpos se desmancharam em areia. O vento se intensificou e um redemoinho formou-se. Não se sabia o que era um, o que era o outro, o que era a casa, o que era o deserto.

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