quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Precipício

Este barulho me ensurdece. Ouvir o próprio coração não é algo comum. Quando era pequeno tinha interesse em escutar parte de mim, mas agora - depois de velho - tal batida incessante me irrita. Não sei desde quando me dei conta da presença desse órgão. Assim que me apercebi dele fiquei um pouco cabreiro. Ter a dimensão constante da vida de si é algo muito estranho. Apenas vivemos sem que a todo o momento algo nos lembre que estamos vivos. Como posso eu ter essa percepção sem me auscultar? Não sou médico, nem enfermeiro. De hospitais, quero distância. Estar na presença de doentes me causa náuseas. A fragilidade do corpo e a impotência espantam-me. 

Creio que seja por isso que de um tempo pra cá comecei a desejar ser vento para ter a leveza e a rapidez de me movimentar e ser percebido sem ser visto. Iniciei, então, um plano para realizar um pulo sem paraquedas e agora estou diante desse cânion lapidado pelas erosões e pelo tempo. Realmente seria interessante ser ar. Não tenho vontade de ser pássaro, pois teria trabalho de procurar alimento e de escolher para onde ir. Nesta altura da vida, quero apenas contemplar. Mas o vento não tem sentidos, alguns me questionariam. Eu seria um ser humano vento. Uma nova categoria de ser. As crianças conseguiriam me compreender melhor. Elas, sim, conseguem colocar olhos, boca e nariz no vento.

Este tum-tum constante está começando a precipitar a minha escolha por saltar. Contudo, ao olhar a paisagem e me deparar com a vastidão desse longo labirinto de rochas sem ter a dimensão da profundidade do abismo, paraliso a minha decisão: o limite da vida vem dessas escolhas. Podemos nos matar aos poucos ou apenas saltar. Andei até a beira do cânion, um frio na barriga tomou-me, recuei alguns passos e sentei numa pedra, olhei para o alto, as nuvens compunham uma vastidão de desenhos e formas. Haveria de ter algum artista por trás desses desenhos: talvez seja simplesmente o vento ou, quem sabe, um ser enigmático que fica a pincelar as nuvens utilizando o ar como instrumento. Nesse instante, minha memória começou a projetar nas nuvens um trecho de minha infância.

Engraçado lembrar os dias em que passei em cima de uma árvore observando tudo o que poderia ser contemplado lá do alto. Os raios solares batiam na folhagem e os nervos das folhas permaneciam escuros, enquanto o seu esverdeado tornava-se translúcido com a luminosidade. Quando descia, ia direto até a varanda ouvir as cantigas de minha avó. Ela cantava músicas de sua infância em algum dialeto africano. Filha de escravos, vovó Zica guardava todas as cantigas de memória. Sentava ao seu lado, pegava sua mão e ficava apertando suas veias estufadas – mão magra com veias grossas. Perguntava-me como podiam as ramificações das folhas das árvores serem tão parecidas com as veias das mãos de minha avó. Essa era uma das belas semelhanças que capturava da vida e guardava na memória.

Desde menino gosto de cultivar pequenas coincidências. Com isso, colecionei várias observações sem pretensão alguma de compreendê-las, apenas me encantava com as possibilidades que esses olhares me proporcionavam. Só depois vim a amadurecê-las e saber do que algumas se tratavam. Até hoje muitas delas estão sem respostas. Eu era menino de olhar e pouco falar. Isso fazia de mim um ser estranho aos olhos dos outros. Por vezes ouvia alguns familiares dizerem que eu era um menino muito ensimesmado. Achava graça dessa palavra e repetia com orgulho: sou ensimesmado. Era como se eu fosse “eu mesmo” duas vezes e achava isso muito interessante, porque se eu podia ser várias vezes eu mesmo, queria dizer que não me confundiria com os outros. Passei a me achar importante depois de ter ouvido esses fuxicos familiares.

Depois dessa regressão à minha infância, o som das batidas do coração principiou uma orquestração mais intensa e acelerada. Parecia que minha cabeça estouraria e não precisaria mais saltar do precipício, devido ao enjoo provocado pela rapidez das batidas do órgão que provavelmente me retiraria a consciência em segundos. Fechei os olhos e tapei os ouvidos para não mais ouvir o coração, mas de nada adiantou tal intenção. Voltei minha visão para as nuvens, seus formatos haviam sido transformados e os raios solares tinham dado cores mais vibrantes àquela arte. Dessa vez, outro trecho da minha memória começou a ser projetado.

Duas décadas tinham se passado do momento em que subia em árvores. Agora me encontrava na universidade, envolvido com diversas causas político-sociais. Em um dos momentos de ativismo, conheci uma menina na fila de um refeitório, após várias palestras patrocinadas pelo Ministério da Educação. Eu não morava naquela cidade, tinha viajado vários quilômetros até lá e na fila daquele lugar a vi. Tentei me aproximar de alguma forma e a primeira ideia que me veio à cabeça foi lhe perguntar se ali naquela cidade as pessoas comiam farinha, pois - como bom nordestino - aprecio esse ingrediente. Ela voltou-se para mim e falou: aqui se come farinha, mas como estão servindo strogonoff não há farinha para acompanhar esse prato. Senti-me um idiota. Ela sorriu. Sentamos juntos e desde então compreendemos que tínhamos muito em comum o que contribuiu para nos aproximarmos. Voltei para a minha cidade e depois de três meses por coincidência nos reencontramos em outro estado da Federação.

Estávamos na cidade onde o mar e as montanhas torneiam a sua silhueta. No dia em que cheguei não nos esbarramos. Foi somente no dia seguinte, quando descia para o café-da-manhã, que a encontrei no elevador. Ambos estarrecidos ficamos ao percebermos que algo desse tipo ocorria na vida real. Eu, cético por natureza, sempre pensei que reencontros inusitados somente ocorressem em filmes de comédia romântica. Seguimos para o café da manhã e comprovei que não era por simples acaso que nos encontrávamos no mesmo lugar. Realmente tínhamos muito em comum: eu estava naquele congresso para apresentar meu trabalho sobre racismo geográfico e ela para apresentar seu projeto sobre educação popular.

Durante o dia, cada um expôs seus trabalhos e participou de palestras diversas. Ao entardecer um foi ao encontro do outro. Andamos ao longo da orla, atropelando nossas falas: rimos, discutimos e nos entendemos. Estávamos afobados por dizer tudo o que nos definia, tudo o que demarcava a tênue linha que contornava a nossa identidade, para ver se assim conseguíamos nos seduzir ainda mais. Os pontos de divergência eram transformados, na maior parte das vezes, em um respeito pela capacidade mútua de aceitar o debate e pela riqueza das argumentações, que possibilitavam cutucões interessantes nas “verdades” que defendíamos, gerando certa instabilidade à nossa forma de refletir sobre as coisas do mundo.

 O tempo corroía as horas rapidamente. Compreendi, em poucos minutos, que aquele era o meu primeiro encantamento efetivo por alguém. Decidimos então tomarmos um ônibus e conhecer um local tradicional da cidade, em que a música permeava o espaço. Lá chegando começamos a dançar ao som de uma canção demarcada pelas percussões e melodiada pelos violões, um ritmo afro-indígena-europeu, mistura que nos fez. Aos poucos, círculos humanos se formaram e as batidas das alfaias davam a marcação do bailado daqueles que estavam de mãos dadas na corrente humana. Não éramos apenas mais um indivíduo naquela roda. Fazíamos parte de um todo organicamente constituído. Noite repleta de sons e sentimentos. O tempo, inimigo dos apaixonados, correu assoberbado. Voltamos ao hotel, com o céu já claro, lanchamos juntos e cada um seguiu seu rumo.

Despertei dessas imagens projetadas nas nuvens. As batidas do coração tinham se apaziguado. Entendi que minha vida já tinha trilhado passos suficientes. Hoje olho a rede que formei durante a vida e vejo que teci um emaranhado colorido. Cada pessoa trouxe um pouco de sua linha, outros fatos compuseram esse tecido. Caminhei sem medo até a beira do precipício e pulei.

Assim que saltei, as batidas do meu coração começaram a acelerar. O vento batia em todo o meu corpo, as vísceras se deslocaram provocando uma sensação vertiginosa. Arrependi-me do pulo. Roguei para que o tempo parasse e mais uma chance fosse me entregue. O coração parou, senti uma pressão descomunal no peito. Um barulho astronômico tomou conta do silêncio do lugar tranquilo. Flutuei no ar e pude contemplar a paisagem no meio do salto. Acabara de acontecer algo inimaginável. No mesmo instante, meus olhos reais se abriram, estava em uma mesa de cirurgia e os médicos carregavam em suas mãos aparelhos de eletrochoque. Tinham-me reavivado. Olhei para o lado e lá estava a máquina que trazia o barulho das batidas do coração, esse soar constante era a único meio que me ligava à realidade durante o tempo em que eu visitara o meu passado. Cada batida sintetizava a possibilidade de retomar minha história.
(texto publicado pela Revista MeiaUm, n.10, fevereiro 2012)

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