segunda-feira, 4 de junho de 2012

Trambiques premonitórios

          Caio não sabia como conseguiria, mas naquele dia teria de levantar um montante considerável de dinheiro para pagar o aluguel e a conta que deixara pendurada no mercadinho do Nôco. Isso porque já tinha engambelado os seus credores por muito tempo e estes deram o ultimato: teria de pagá-los naquela terça-feira. Caio, então, teve um estalo. Esses que aparecem quando a necessidade bate à porta desesperadamente.

 Vestiu-se com trajes de vidente, que possuía desde que sua ex-mulher rica comprara, para que ele usasse em uma festa à fantasia. Depois da separação, sem ter onde cair morto, Caio começou a trabalhar em bares e restaurantes, mas logo viu que a vida de homem honesto não era pra ele. Na juventude, casou-se com uma mulher de posses e por isso já tinha se adaptado ao lado bon-vivant de estar no mundo: casa chique, comida grã-fina, roupa lavada e engomada, viagens e mais viagens. Mamar nas tetas de outra pessoa, esse era o seu lema.

Após a separação, ficou sem nada. Tinham se casado sob o regime da separação total de bens, pois a ex-mulher era pós-graduada em esperteza. Ele nunca conseguiu passar a perna nela no quesito finanças-graúdas. Tal lucidez que a acompanhava apenas se deixava esmorecer quando ele vinha com seus encantos em palavras, mas, mesmo assim, ela não deixava o palavrório de Caio desmanchar por muito tempo a clareza com que via aquela relação.

A ex-mulher era a única criatura viva em que sua retórica aguçada não alcançava os seus propósitos sagazes. Caio fazia o que queria apenas usando o seu poder de persuasão. Foi assim que - com aquela roupa de vidente e sua habilidade terapêutica em escutar a fala alheia e os dramas dos outros -, em poucas horas, conseguiu levantar a quantia necessária para pagar as dívidas penduradas.

Tudo ocorreu rapidamente. Foi a um salão de cabeleireiros e lá ofereceu seus serviços de vidente. As mulheres alvoroçaram-se por saber o futuro. Primeiro, porque o vidente era portador de uma voz rouca e séria, que provocava nelas tremeliques, depois porque a articulação do rapaz com as palavras transmitia um ar enigmático de sujeito possuidor de dons transcendentais e, finalmente, porque já estavam desencantadas com o cotidiano, queriam imergir no futuro. Tais ingredientes lhes davam a segurança necessária para despender uma quantia considerável em uma sessão premonitória com o sujeito fantasiado.

Esse foi o começo da trajetória de Caio na arte de contar o futuro dos outros com criatividade. Iniciava as sessões falando sobre relacionamentos, depois sobre família, até chegar à vida profissional. Sempre sugestionava algumas viagens que ocorreriam no meio do caminho. Nesse ínterim, observava as reações que seus dizeres causavam sobre os clientes. Constatava, em alguns momentos, que suas falas despertavam angústia e em outros, felicidade. Com isso, desviava o prumo da fala para que as sensações ruins fossem desmanchadas e as boas aguçadas.

À medida que suas previsões se desenrolavam, ele as direcionava para que aquelas pessoas saíssem da sessão com ares mais tranquilos e serenos. Pensava consigo que estava sendo um bom samaritano. Afinal, trazia, com suas premonições, histórias bem sucedidas de vida: amores perfeitos, ao gosto do freguês, vidas profissionais bem sucedidas. Acrescentava filhos nas previsões de mulheres que queriam tê-los, não comentava sobre bebês nas sessões que sentia não poder falar a respeito. Sapecava alguns problemas de saúde passageiros no meio das falas, apenas para dar certa sensação de realidade aos relatos.

Caio descobriu uma boa forma de levar a vida: vidente das almas desconfortáveis com o presente. Com o passar de poucos anos, viu que poderia alçar voos mais altos, pois dinheiro já não era problema, almejava então o poder. Refletiu: agora que estava mais conhecido e respeitado entre as pessoas da comunidade, pensou em se candidatar a vereador. Começou a se aliar aos figurões da indústria e dos jogos de azar. Seduziu-os com o seu discurso de sujeito aliado às causas do segundo setor. Afirmava, com convicção, que ao ingressar no mundo político lutaria pela redução de tributos para as atividades industriais, além de buscar regulamentar os jogos de azar.

Depois de duas tentativas sucessivas, alcançou o tão almejado cargo de vereador. Com eloquência e a defesa da ética na política, galgou nas eleições seguintes outros cargos políticos mais poderosos. Passou a deputado federal, depois a senador. Com isso, irradiou seu poder sobre os diversos ramos dos setores econômicos do país. Facilitou o caminho dos seus aliados do crime organizado nas redes governamentais. Tramou para que seus contribuidores de campanha vencessem licitações. Distribuiu cargos para vários apadrinhados políticos nos setores estratégicos de governo.

Eis que não contava com uma gravação da polícia federal. As escutas vazaram para a imprensa, então seus tentáculos foram expostos. O julgamento público realizou-se. O senador Caio, chamado de Sua Excelência, passou a ser denominado pela população de Sua Excrescência nas rodas de bar.

Caio avaliou junto com seus advogados, em que medida seria interessante juridicamente permanecer com foro privilegiado ou não. Decidiu pelo foro. Seus advogados - como bons processualistas, sabedores de todos os meandros recursais possíveis e inimagináveis aos olhos dos cidadãos comuns - conseguiram fazer com que seu processo se desenrolasse a passos de tartaruga. Consequência: Os crimes prescreveram. Apesar disso tudo, não conseguiu safar-se da cassação do mandato.

Depois de poucos anos, hoje Caio voltou a ser chamado de Sua Excelência e caminha pelas alas do Congresso Nacional, mas nunca fora eleito com o voto de sua ex-mulher. A vida anda em círculos, a política também. Crendices em um futuro promissor, crendices em promessas de campanhas rechonchudas. Nesse meio, lá está Caio, ou melhor, Sua Excelência Caio, de vidente a político.


(texto publicado pela Revista MeiaUm, n. 14, junho de 2012) 

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