quarta-feira, 18 de julho de 2012

Recheios Paulatinos

Foi de um jeito descuidado que tudo começou. Um convite, uma aceitação e, enfim, uma das noites mais agradáveis da vida de Jonas. Ao menos, creio eu. Aquele sujeito mestiço, com o ouvido apurado e o raciocínio rápido. Conseguia compor músicas como ninguém. Sabia contemplar um lugar apenas se sentando em um canto e, de preferência, próximo a uma mesa cheia de pessoas.  Quietava o facho no pedaço do bar em que havia mais fregueses, durante horas a fio, sem dizer uma palavra, apenas escutava o que os outros falavam. Tinha obsessão por observar como a conversa alheia dava voltas e mais voltas entre assuntos distintos. Permitia-se ficar de butuca no papo pro ar dos outros só para satisfazer essa avidez por perceber a fluidez das palavras em conjunto com as tonalidades das falas.
Ele achava interessante como muitas das conversas apenas tinham começo; não chegavam ao meio, muito menos, ao fim. Na verdade, eram poucas as que conseguiam se desenrolar trilhando um elo racional. A união das falas gerava uma melodia tresloucada. Desencadeava-se de forma sinuosa. Como se a prosa fizesse parte de uma rua repleta de ziguezagues. Muitas vezes, as palavras vinham ágeis; outras mais leves e serenas; algumas misturadas com risos largos; além daquelas que traziam consigo julgamentos do tipo: Como isso pôde ocorrer? Dito em tom grave.
Os assuntos se entrecortavam por mais que, em alguns momentos, Jonas tivesse a curiosidade de que determinado ponto da conversa caminhasse até o final. Mas nada, as pessoas não permitiam. Sempre tinha um alguém a chamar o papo pra si e tirar o assunto interessante da roda. O pobre do Jonas se frustrava constantemente. Quase sempre a conversa era desviada por alguém desinteressante. O tal ser repugnante conseguia retirar a cadência do assunto fantástico, que provavelmente teria um final bastante inusitado, e introduzir cenas do cotidiano com dramas banais. Porém, só depois fui descobrir esses detalhes da vida de Jonas. 
Certo dia, eu fui a um bar qualquer. Mas, para Jonas, aquele mesmo bar fazia parte de sua família. Era o seu lugar cativo. Sentei-me em uma mesa distante de todas as outras e vi um sujeito rindo sozinho, enquanto a mesa ao seu lado gargalhava. Percebi que ele estava a prestar atenção no que duas moças e dois rapazes diziam. 
Eu sou daquelas pessoas que se sentam distante das outras, para ter o maior panorama possível do espaço onde me encontro. Isso porque tenho por hobby interpretar os gestos e as expressões corporais dos outros. É um gosto invasivo, eu sei. Sinto que sou a expectadora da vida alheia, sem ser convidada para tanto, nem pagar ingresso pra isso. Ver as roupas dos outros, seus hábitos ao comer, seus tiques, suas manias. Sempre me divirto apenas observando o caminhar e a forma de se portar à mesa desses cidadãos. No que diz respeito ao que estão dizendo, já não tenho muito interesse, porque eu gosto mesmo é de tentar adivinhar. Por isso, me sento distante. Muitas vezes, com um lápis na mão e um bloco de notas. Passo a construir histórias apenas vendo, sem escutar.
Naquele dia, fiquei assistindo àquele par de mesas dialogando sem se falarem. Uma mesa era efusiva, com quatro pessoas; outra solitária, com um homem divertindo-se em silêncio com a conversa daqueles. Na mesa do par de casais, a conversa corria solta sobre a mesa e as mãos e os pés deslizavam por toda a parte por debaixo dos panos. Fidelidade era algo que os sujeitos ali não possuíam. Explico-me melhor: enquanto as mãos dos casais percorriam delicadamente as mãos de seus pares em cima da mesa, o contato dos pés com as pernas dos casais trocados representava a lascívia. Já a mesa do sujeito solitário, que estava na companhia de um copo de chopp, um papel e uma caneta, parecia tranquilizar-se com as falas dos casais, sem ver as cenas capturadas por mim.
Tive o impulso de ir ao encontro daquele ser solitário. Um sentimento de solidariedade me direcionou a isso. Afinal, aquele furtador de falas deveria ter a noção do que ocorria naquela mesa falante. Algo de detetive subversivo implantou-se em mim. Aquilo que o sujeito solitário escutava tinha de ser complemento com os recortes de imagens vistos pelos meus olhos. Saí da minha mesa, peguei meu prato de macarrão e fui me apresentar ao sujeito solitário.
- Olá! Posso me sentar?
Ele me olhou assustado e perguntou:
- Pode sim. Nos conhecemos de algum lugar?
- Não. Estava ali do outro lado e observei, não sei se estou equivocada, que você ouvia a conversa das pessoas aí de trás. – Afirmei, um pouco sem jeito.
- Sim, tenho mania de ouvir a conversa dos outros. Mas, na maior parte das vezes, não presto atenção aos assuntos, somente me detenho às tonalidades das vozes, a densidade das palavras. Não sei se você compreende. É que sou músico. Me interesso pela dramaticidade das falas, sua leveza. Observo mais a composição, do que o que está sendo realmente dito.
- Compreendo sim. Então você não prestou atenção ao que eles estavam falando? – Perguntei.
- Dessa vez não. Só me interesso pelo assunto quando a pessoa que domina a conversa consegue me capturar pelo tema, mas sempre tem alguém que interrompe a fala daquele que conseguiu prender a minha atenção. Daí acabo só observando mesmo a cadência das falas. Isso me ajuda a compor melodias e a escrever letras de canções.
- Interessante. Então, o meu propósito de chegar até você, para falar sobre o que vi à distância da mesa dos casais, foi pelo ralo. – Afirmei, com vontade de que ele se interessasse em saber o que eu tinha observado. Alguns segundos se passaram e ele perguntou curioso:
- O que você viu?
Repeti a ele o que já lhes disse sobre o que ocorria na mesa ao lado e ele enfático falou:
- Isso dá um samba dos bons! 
Jonas começou a desenvolver a letra e eu a ajudá-lo. Ele escreveu um trechinho no papel: 
Par com par/ Vamos ver no que dá/Essa troça que se enrosca.
Eu complemente:
E se toca, mas por debaixo dos panos.
Ele veio com mais um verso depois de pensar por alguns minutos:
Só não podem se descobrir.
Eu complementei de supetão:
Senão, o encanto se desmancha/E vira um borrão transformado em mágoa/Que se acaba por aí.
Ele anotou os meus versos e começou a reler tentando tirar dali um samba:
- Par com par/Vamos ver no que dá/ Essa troça que se enrosca/E se toca, mas por debaixo dos panos/Só não podem se descobrir/Senão, o encanto se desmancha/E vira um borrão transformado em mágoa/Que se acaba por aí.
Então ele disse:
- Vou trabalhar mais nessa canção e construir um belo refrão. Acho que da próxima vez vou tentar sentar distante dos fregueses do bar. Essa sua maneira de observar é bastante produtiva.
      - Não se esqueça de que ao se sentar próximo das pessoas, as palavras faladas também ajudam na cadência dos ritmos e isso lá tem suas vantagens. – Complementei.
         Olhei o relógio e observei que já era hora de pegar o avião. Tive de me despedir daquele sujeito peculiar e seguir rumo ao aeroporto. Claro, antes de ir, pedi a ele que assim que terminasse a composição me enviasse por e-mail a música completa. Esse foi mais um dia a rechear minha caminhada por aí.

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