domingo, 14 de outubro de 2012

Ah, aquela cidade de concreto

imagem retirada do google

           O formato geográfico da cidade onde nasceu é uma metáfora que explica bem a identidade daquele lugar. Desde o primeiro trator que percorreu o espaço escolhido para se iniciar a construção da cidade, esta não deixara de ser um local de chegadas e partidas. Lá qualquer endereço sintetiza um ponto cardeal. É como se a rosa dos ventos penetrasse os cidadãos que ali habitam e fizesse com que esses falassem, a partir de orientações cartográficas, os endereços de onde pretendem ir. Poderia se dizer que o GPS é um instrumento dispensável por lá.
A cidade vista bem lá do alto se transforma em um aeroplano. O satélite capta a imagem e projeta a personalidade da cidade: espaço de convergência de pessoas de diferentes regiões do país e, ao mesmo tempo, lugar de dispersão de seus habitantes provisórios e os de nascença. Os filhos dessa cidade acabam tendo um pé em um Estado e o outro, noutra região. Seriam todos filhos de Antônio Brasileiro, como diz a canção de Chico Buarque. E nessa mistura de sotaques, acabou-se por podar os regionalismos de cada lugar e a fala dos que lá residem foi se modelando feito barro, limando-se os acentuados regionalismos do norte, sul, leste e oeste do país, tornando-se um português que é a mistura de todos os sotaques atenuados.
Seus prédios parecem caixinhas de fósforos dispostas de forma diversa em cada quadrado delimitador de uma quadra. Muitos visitantes assim que desembarcam e percorrem a cidade lhe dizem: “Todos os lugares parecem se repetir. Muitas vezes nem sabemos reconhecer em que quadra estamos. Não há nada de peculiar entre um endereço e outro”. Pelo menos essa era a primeira impressão, mas depois de algum tempo, os repetidos retângulos habitacionais passavam a ser vistos a partir das peculiaridades e sutilezas de cada canto.
O eixo que recorta as asas do lugar acaba sendo uma auto-estrada em que se chega e que se vai embora. Esse lugar cartesiano não é para todos, é preciso de alguns ingredientes para se adaptar ao incomum das avenidas largas e espaços setorizados. As ruas identificadas por letras e números, ao invés de nomes, traz estranhamento aos forasteiros. A falta de pedestres pelas calçadas é para alguns, não acostumados com essa lógica de não-ocupação do espaço público, sinônimo de solidão. Para parte desses recém-chegados a falta de transito humano vai dilacerando seus dias e fazendo com que o banzo da terra natal instale-se, para então se retirarem da cidade repleta de balões e tesourinhas, dizendo-lhe: “Adeus, para cá não volto mais”. Mas o que faz outros ficarem feito ela?
A quadra em que ela cresceu era uma das menos urbanizadas na época de sua infância. Tinha apenas quatro blocos e uma entrada incomum, para o padrão urbanístico da cidade, pois a entrada dava-se pela comercial. E logo na rua de acesso havia uma banquinha de jornais amarelada, onde ela comprava todos os dias “xaxá de banana”, uma balinha com um macaquinho ilustrado na embalagem, e folheava gibis.
Cada quadra, daquela cidade, era habitada por servidores públicos de distintas instituições que compunham o Estado. Tinha-se a quadra dos funcionários do Banco do Brasil, a dos militares, a dos ministros dos Tribunais e assim por diante. A quadra dela era a dos professores da Universidade pública local. Por isso, desde a infância percebia que muitos de seus amigos tinham pais com sotaques de diferentes partes do mundo e de diversas regiões do país, assim como seus pais. Era como se aquele espaço se tornasse um caldeirão cultural. A cada visita que fazia a um de seus amigos, uma nova realidade cultural se apresentava aos seus olhos curiosos.
As áreas verdes da sua quadra eram transformadas em um playground sem parquinho. Naquela época, a terra vermelha, a grama e o concreto dos blocos que faziam parte da arquitetura da quadra eram os espaços ocupados pelas crianças. Diariamente, a zoada tomava conta do lugar: bete, pique esconde, pique-bandeira, polícia e ladrão, amarelinha, pique-pilastra, bola de gude, dentre tantas outras brincadeiras faziam a festa das crianças.
Era um período em que havia os “bate-bolas”: Um grupo de jovens de classe média que saia pelas quadras com pedras dentro de meias de tecido para bater nas crianças que viam pela frente. Assim que alguns de seus colegas viam esses grupos gritavam: “Olha lá os bate-bolas”. Todos corriam desesperados para suas casas e só voltavam a descer depois de algum tempo. Hoje não mais se ouve falar em “bate-bolas”, mas ainda se vê algumas crianças debaixo dos blocos, nem tanto como antes. Talvez seja a síndrome da internet, que vem transformando as crianças em sedentários precoces.
Nessa cidade os períodos de seca fazem os narizes escorrer sangue e os lábios racharem. A paisagem também é transformada nessa estação do ano. A grama deixa o seu verde característico e se torna bege. As folhas das árvores caem dando espaço aos seus galhos contorcidos, em contraposição aos ipês que florescem nessa mesma época, pincelando diferentes tons vibrantes no espaço descolorido. A poeira da terra avermelhada sobe, misturada com a poluição, dando ao ar um tom marrom, o que faz o sol ficar mais dourado quando o dia vai deixando de ser dia. A respiração pode falhar nessa época, fazendo com que os pouco adaptados desmaiem ou sintam dores fortes de cabeça.
De alguns amigos e parentes de fora, ela sempre escuta: “Você mora na ilha da fantasia”. Mas basta parar em um semáforo, para essa frase cair por terra e se perceber que o país desigual também é observado naquele lugar. Não é por nada mais, nada menos que as cidades satélites absorvem os trabalhadores do espaço carente de transporte público. Esses satélites habitacionais vão contornando aquele aeroplano e mostrando que o índice de desenvolvimento humano na cidade de concreto está muito aquém do ideal. É só observar a cidade satélite que cresceu em torno do lixão da cidade.
De fantasia só lhe restou as máscaras que dão identidade aos “mensaleiros”. Esses tentam dar um nó jurídico na Suprema Corte para saírem à procura das ilhas da impunidade. Talvez a ilha que tantos apregoam seja mais um reflexo da imagem de políticos pouco afeitos ao espírito público, que a cada gestão da cidade, mostram o que não deve ser feito no jogo político: pagamentos de propinas realizados por empresas privadas para vencerem licitações; inúmeros cargos comissionados distribuídos entre apadrinhados políticos; patrimônio pessoal desses gestores públicos muito superior ao que seus salários podem comportar. Patrimonialismo na veia, alguns diriam. Clientelismo, também. Fisiologismo latente. Dinheiro espalhado em cuecas, bolsas, meias.
Cá está ela tecendo essa história no saguão de espera do aeroporto. Agora é ela quem se despede, sem dizer adeus, e sim um até logo àquela cidade que a recorta, não tendo data para retornar. Ela tão afeita aos espaços públicos habitados e crítica dessa cidade tão dependente de carros, com transporte público precário. Mas, ainda assim, uma cidade que lhe permitiu se desvendar aos poucos na vastidão de seus vazios, nos silêncios de seus gramados. Ela que conhece todos os cantos e satélites daquele quadrado instalado no centro do seu país. Nesse momento, ela se retirará da cena cartesiana, do concreto da arquitetura daquele espaço, para se perder e se reencontrar em outros lugares.

Um comentário:

  1. Escrevi esta crônica há um bom tempo. Tentei transformá-la em outra coisa, mas a gripe e a preguiça me impediram. Resolvi, então, voltar com ela para o blog. ;)

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