domingo, 10 de julho de 2016

Cambaleando



Deixa estar. Dizia ela ao pé do ouvido, sem grandes pretensões de continuar caminhando junto dele. Assim, conforme andavam a passos curtos e lesados aqueles encontros sem comprometimentos permaneciam, sem impulso por fixar território, lastrear em documentos a vida a dois. Quedavam ali, naquela vida mansa, sem muito a buscar.

Quando queriam companhia, um poderia estar disposto ao encontro, o outro não, e vice-versa. Quando queriam, encontravam-se. Era assim, cotidianamente pactuavam o não enredamento. Ligavam-se por fio tênue. Era o vício de liberdade. De privacidade.

Assim, dois anos e pouco se passaram, até que ela experimentou em outro canto sensação nova. Cobrança por presença, por laço, por afeto continuado. Aquela fala cheia de calor acolhedor ao pé do ouvido: Fica mais, fica um dia, fica uma semana, mês, fica pela manhã, fica pela tarde, não se vá a noite.

Não teve jeito, deixou-se cativar. Fincar morada, assim se deixou amar, se deixou querer. Descobriu liberdade dentro da fronteira do querer estar ao lado dele e assim se fez mais livre do que antes, dali se fez vida, se fez riso, se fez tristeza, se fez história.


E até hoje lá estão se querendo.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Silêncios de alma



Ela não entendia o sentimento que a dominava ao ver o homem de sua quase morte escoltado. Aquele ser, que com o tempo, tinha a transformado em seu bibelô pessoal.

Vendo-o partir sob escolta policial algo de triste, medo, incerteza, alegria se misturavam. Ainda tinha a memória do trecho de sua vida em que fora feliz, os meses em que aquele mesmo sujeito que a violentara por tantos anos a chamava de doce de mel e admirava com ar apaixonado suas curvas. Aquele ser que a retirara da dor diária da violência paterna.

Foram poucos os meses de paz. Logo, o homem transformou o alívio em desespero. Fez com que retornasse àquela mesma escuridão de tapas, socos e palavras vis.

Trazia no rosto as marcas de uma ausência de infância, de mocidade, de maturidade. Pancadas secas, palavras atrozes tinham-na levado ao limite da vida. Quando caminhava pela rua, tapava os hematomas por envergonhar-se, por acreditar que havia apenas uma culpada naquele ciclo de dor: ela.

Depois de anos de violência e recomeços com intervalos de gentilezas fortuitas, no último dia de sua quase morte, houve algo de diferente. Dessa vez, fora internada. O homem foi denunciado, não por ela, por vizinhos, com a prova no relatório médico de que, por pouco, não morrera.

Agora, ele estava ali na sua frente. Caminhava. Partia para uma grade. Ela, na incerteza do que estava por vir, mirava o sujeito e sentia um vácuo dentro de si com uma ponta de esperança. Que história carregava? Quem era ela?  

Viu, em sua carne moída, algo nada nítido. Apenas reconhecia que tinha sido uma mulher desejada por aquele homem por tão pouco tempo, para logo depois ser transformada naquele ser dilacerado. Ainda estava fraca para mirar a saída, mas tateava-a, com temor do novo, apenas tateava. 


domingo, 24 de abril de 2016

Cenários

Não me confundo.
Despertei de anos sem começos.
Ao menos dessa vez, pé ante pé, alcancei-te.
Regressar?
Não há como!

Aqui, os silêncios se comunicam.
As falas são entremeadas por substantivos
As ações verbalizadas sem cortes
As experiências relatadas com dendê
Cúmplices, sem crimes

Embaralhei-me em ti,
Por inteiro, nua, crua, sua.
Dei partida ao determinante.
Sua vida amontoou-se na minha
Desfez as amarras de tempos mesquinhos.

Reiniciemos sempre,
Esse movimento
Do alinhavar de tijolos lambrecados de cimento.
Reiniciemos sempre,
Esses olhares, essas mãos, essas bocas que se iluminam.

Em círculos, ao raiar do sol, lá bem lá, pulsaremos.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Catando silêncio no mato

No meio da floresta, tentava aquietar-me e sem sucesso o barulho aqui de dentro se confundia com os chiados da natureza. Pelejava para diminuir a voltagem e nada.

Via que mesmo no meio do mundaréu de árvores, raízes, folhas, bichos seguia vindo um turbilhão de histórias. Só me dava conta de que estava recortando personagens quando percebia que queria silenciar os pensamentos.

No fundo do mato sereno. No medo dos bichos do mato. No barulho ensurdecedor do pensamento. No nada de ter tudo e não ter nada. Na riqueza de uma vida simples.

Em um momento qualquer, senti que me serenei. Catei o silêncio por tempo indeterminado quando olhava o rio, riscado pelo navegar do barco.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Acumuladores de tantos e tão poucos

Seja bem-vindo. É só entrar. Não precisa fechar a porta. Deixe-a aberta. Vai ficando, sinta-se à vontade. E se partir deixe um bilhete desses que me façam revisitá-lo. Nele não fale até logo, não diga adeus de jeito algum. Mas se decidir partir e não deixar nenhuma matéria. Tudo bem. Não há problema. Aqui onde moro, em cada fresta, há entulhos de coisas que acumulo e em alguma fresta lá você estará. Não se estranhe. Sou dessas doidas que não deixa ir, nem se quisesse, conseguiria. Estará guardado nem que seja no pedacinho de um papel, numa imagem captada em uma tarde qualquer. Ou mesmo nessa velha caixola que não se esquece. Sou guardadora. Sou empilhadora. Não tem jeito. Faz parte de mim. Revisitar, eis minha marca. Seja num canto ou noutro. Seja daqui a um segundo, seja no final de tarde de um domingo perdido, onde bate aquela aguda lembrança das frestas que são colocadas em slides. Alguma fagulha pode reacender e um traço de você surgirá. Se decidir permanecer, talvez encontre onde habito um pouco de bolor, fungos, mas nada muito tóxico. Os acumuladores são assim. Não conseguem se desfazer da poeira, da fauna de suas vidas e deixam-se estar.