domingo, 29 de janeiro de 2012

Do espanto à lucidez

Vieram devagar.
Ouvi os barulhinhos de longe.
Cobra com seu chocalho.
Ratos e seus ruídos.
Baratas, lesmas, sapos não escutei; apenas vi.

Os nervos começaram a endurecer.
O ventre a se contrair.
O corpo a arrepiar.
As extremidades a gelar.
O suor a percorrer o rosto.

Parei de temer o porvir.
Debrucei-me em ver por outro canto do entender.
O fundamental é saber enxergar.
Apaziguei o corpo.

Os bichos me alcançaram.
Subiram em mim e na cadeira.
A cobra circundou as pernas sem apertar.
As baratas subiram até a cabeça e se embrenharam pelo cabelo.
Os sapos e as lesmas se estabeleceram nas cochas.
Um rato urinou quentinho no ombro direito,
O outro cheirava o esquerdo.

Transformei-me numa árvore da vida.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Texto corrido: Vida corrida


Por que às vezes a vida é tão doce, outras tão cinza, tantas vezes onda de subir e de descer e mais algumas, mansidão? Não há explicação fácil de ser dita em um texto de algumas linhas. Nem sabemos se há explicação. Têm fases em que escolhemos o claustro de um quartinho com algumas companhias silenciosas. Seriam essas felizardas: nossas próprias memórias, ou nossa imaginação, ou a leitura sobre causos inventados pelos outros, ou recortes de imagens desencadeados em uma tela de tevê. Desligamos o telefone, o computador e se a campainha tocar não atendemos, por mais que o carro na garagem e o porteiro do prédio denunciem nossa presença. Nesses momentos, queremos fugir de pessoas mesmo que elas não aceitem. É fase, oras! Se perpetuar por mais de um mês, talvez seja o caso de chamarem o corpo de bombeiros. Há fases em que não aguentamos a nós mesmos. A partir daí nos transformamos em seres sociáveis. Momento de colocar a agenda do celular para funcionar. Damos prioridade aos amigos que falam bastante sobre si, porque de nós já estamos saturados. Ouvimos, ouvimos e ouvimos mais um pouco. Assim que nos deixam dar alguns pitacos, passamos a aparar arestas na vida alheia, porque bons ouvintes são assim mesmo, na vida dos outros sabemos tudo o que deve ser feito, mas quando nos voltamos para as nossas, a coisa muda de figura. Têm fases em que a geografia do lugar em que nos encontramos já está tão reprisada que sentimos a necessidade de vivenciar outros horizontes. São fases em que ter um pouco de dinheiro guardado se faz necessário. Pelo menos para poder pagar a gasolina do meio de locomoção ou a passagem da promoção veiculada de madrugada em algum site de empresa aérea. A escolha do lugar de destino nem é tão relevante assim, o importante é sair da cena cotidiana. Acabamos escolhendo a cidade a ser visitada pelo preço da passagem. Já quando a viagem é feita com o próprio veículo, a opção se dá a partir do conhecimento da distância a ser percorrida. Saímos do lugar rotineiro para nos depararmos com outros relevos. Muitas vezes com sucesso, outras com acúmulos de boas histórias pra contar, porque toda merda que acontece em uma viagem acaba virando piada. Há fases em que encontramos um alguém que queira partilhar conosco uma relação de afeto e cumplicidade. Nessas vezes, não sabemos por quanto tempo isso tudo durará. Mas partimos do pressuposto de que aquilo vai se desenrolar feito um papel higiênico interminável. Em muitos casos, o rolo acaba antes mesmo de suspirarmos no primeiro afago. E nessa caminhada de conhecer pessoas, encontramos aquelas que podem ser apelidadas de montanha-russa. Quando estão na fossa nos carregam junto com elas, e quando estão no paraíso lá estamos para acompanhá-las. Esse é o momento em que nos descobrimos volúveis, porque aceitamos um ser humano assim, mesmo que pareça ter transtorno de personalidade. Só nos desvencilhamos quando percebemos que precisamos de fôlego para continuar vivendo, porque do jeito que a união seguia, daqui a pouco, dez anos de vida se antecipariam em nossa face. Os cabelos brancos brotariam antes de o tempo genético expeli-los naturalmente. Algo de amor próprio nasce e buscamos seguir em frente tentando alcançar o caminho do meio, como diria Buda, sem tantos paraísos e infernos, e sim mansidão. Mesmo depois de muitas vivências, ainda conseguimos entrar em outras furadas. Têm fases em que nos voltamos mais para o trabalho, o que nos realiza de forma tão pujante que a vida pessoal vai sendo postergada. É a fase workaholic. São momentos em que uma gastrite e algumas gordurinhas a mais vão sendo despejadas no corpo. Há a fase em que nos provocam a constituir uma família própria. Nessa cobrança o ser moral, social, histórico, cultural enraizado na sociedade vem à tona. Para alguns, isso é fonte de angústia, para outros nem tanto. Há a última das fases, aquela em que percebemos o fim. A finitude nem sempre é sentida por todos, mas não há dúvida de que todos chegaremos até ela, e tudo bem. Essas são algumas das fases que passamos, passaremos ou nunca chegaremos a passar. São apenas momentos transitórios. Alguns menos duradouros, outros mais. A cada uma damos um sabor, uma cor, um movimento. Só não sabemos até que ponto estamos no comando do barco ou, à deriva.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Curriculum Vitae

Não me acharás num mercado,
Toda etiquetada ou com códigos de barras.
Cheia de títulos, posses, experiências.

Não me analisarás
Em papel,
Google,
Linkedln.

Por que não largas essa folha?
Essa máquina?
Esse ser burocrático,
Cibernético em piloto automático?

Vem a mim.
Perca-te em mim.
Toca,
   Roça,
     Cheira,
         Aperta.

Se quiseres, transforma-te em árvore.
Se desejares, apega-te aos pixels.
Não serei eu a virar folha, a fim de compor teu mogno;
nem imagem, para penetrar teu Apple.

Nos bifurcaremos.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Nexo desconexo


C: Segue sendo assim, Joelmita.

J: Tô cansada. Outro dia, o João e a Tânia me contaram que assim que me convidam prum barzinho ou algo do gênero, já vão prometendo aos amigos: ‘ temos uma amiga divertidíssima, com ela não tem jeito da prosa falhar’. E lá vou eu suprir essas expectativas. Solto umas piadas, engato a conversa a partir do que vão sugestionando, os palavrões vão brotando ali e acolá. Se tiver um sujeito crente na roda, fica logo espantado. Dá pra ver pelas expressões de constrangimento na cara dele. Quando solta um ‘benza a Deus’ no meio duma frase ou outra, eu já tento reter os palavrões...


C:hahaha... Que bobeira, Jô! Você nasceu assim, desbocada. Isso faz parte de você. Se um dia não sair um ‘que merda’ da sua boca, vou até me assustar.

J: Nascer falando palavrão não nasci, mas desde que ouvi algumas pessoas os dizendo, não como uma forma de ofender, mas como uma interjeição no meio da fala, achei o palavrão uma maneira tão boa de dar ênfase a alguns pontos da conversa, que acabei aderindo às palavras “feias”. Sei lá, sempre vi de forma romântica a chulice da fala. Dá autenticidade à conversa em alguns momentos... Quem sabe falar bem o palavrão é o povo baiano, em tudo eles incluem a palavra foda. E lá vão eles dizendo: ‘esse acarajé tá de fude!’ Outro dia uma amiga me disse: ‘Jô, você tem de parar de falar tanto palavrão, os homens nobres vão acabar se afastando’. Daí não resisti e falei : ‘não quero homens nobres, quero os mundanos mesmo’.  

C: Ah, deixa de ser besta. Você realmente é uma das pessoas com o melhor papo que eu conheço. É um catálogo de temas ambulante. Quando você vê que a pessoa tá sem assunto, faz uma perguntinha e mais outra, daí consegue ainda extrair desse alguém uma prosa...

J: É assim que uma boa samaritana faz milagre. Tem gente que pensa que pra entrar num papo fiado basta estar presente. Não é assim, caramba! Pra conversar precisa de algum engajamento. Ficam o sujeito e a sujeita passivos só esperando a próxima pergunta pra eles poderem responder. O pior é que ainda tem gente que tem preguiça até de falar. Fica num monossilabismo irritante. Daí não tem jeito. Acabo questionando: ‘Você consegue sair de casa só pra ficar me escutando? Haja paciência, viu!’ Alguns riem e acabam destravando... Ufa!

C: Pois é, por isso que a gente acaba te chamando. Pra não deixar ficar aquele silêncio constrangedor. É tão confortável saber que tem uma pessoa bem humorada que vai dar combustível ao convercê...

J: Essa história de eu ser a mulher engraçadinha do pedaço espanta um pouco os rapazóides. A mulher é sempre a pudica do lugar. Posiciona-se nos assuntos de forma contextualizada, incrementa o papo.  Tá ok. Isso eu também faço, mas não resisto a uma boa esculhambadinha. Fico manjando as pessoas da roda e, rapidamente, consigo pegar as características delas. Assim que percebo deslizes nas falas, acabo fazendo troça. Isso espanta a comunidade masculina, já percebi isso.

C: Jô, de onde você tirou essa paranóia?

J: Veja bem, esse negócio de observar o que os outros tão dizendo pra poder tirar um sarro da cara das pessoas e fazer todos rirem, é coisa de menino. Desde pequenos, os homens são treinados para se safarem das sacaneadas dos amigos. Se um sujeito corta o cabelo um pouco na moda, já vão chamando o cara de boiola. Ele raciocina rápido e dá-lhes uma bela resposta inteligente e, ainda sai por cima da carne seca, mostrando que conseguiu superar a barreira do cabelito diferenciado. Isso quando o guri não fala que é gay mesmo e sai correndo atrás dos amigos da onça pra tentar dar um beijo, só de sacanagem. A gente não... As mulheres são sensíveis. Sabem que podem ferir a outra menina sacaneando, por exemplo, o cabelo tingido de loiro que acabou ficando um pouco esverdeado.

C: hahaha... Você tem razão. Lembra da Maria, ela tingia o cabelo de loiro e como sempre praticou natação, o contato com o cloro da água acabou deixando a cabeleira dela verde. Quando ela chegou na escola, todas nós fingimos que não vimos nada, mas você foi a única a fazer o comentário: ‘Ei Maria, agora você virou punk?’ E ainda começou a tocar uma guitarra invisível. hahahaha

J: Até hoje essa menina não fala comigo, depois de 11 anos já tendo se passado. O pior é que nem fiz por mal. Eu não tenho o filtro da sensibilidade. As minhas impressões são arrotadas sem a menor delicadeza. Isso acaba assustando os outros.

C: Mas no dia seguinte ela tingiu o cabelo de moreno escuro. Você acabou fazendo um bem a ela...

J: É a tradicional hipocrisia da mentalidade feminina. Comenta-se tudo sobre tudo, mas não na frente da protagonista, porque pode ferir os sentimentos. É a dificuldade de ver a vida com bom humor. Rir das merdas que acontecem.  Tudo é dito cheio de não me toques irritantes.

C: Jô, você está sendo injusta. Pombas! Acaba sendo a nossa estratégia de sobrevivência também. Somos assim, mais complicadinhas. Queremos agradar pra não machucar, mas não nos aguentamos e temos que sair comentando tudo.

J: A expressão ‘pombas’ é denunciadora de idade, Clara! Hahaha... Pára de falar: ´Pombas’! Se você incluir da próxima vez: ‘Putz grila’. Vai ter de se ver comigo. hahahaha... Mas é tão mais interessante já dizer tudo o que se pensa com bom humor. Sem tanto ressentimento. Tudo bem, pra tudo tem limite. Mas o limite acaba sendo dado pelo bom humor do outro também. E dá-lhe boas respostas para uma sacaneadinha.

C: hahahaha... Da próxima vez que eu observar um cara gostosinho por perto, vou dizer: ‘Nossa, aquele sujeito é um pão’. Satisfeita?! hahaha... Poxa vida, mas aí eu apelei, ‘pão’ é expressão da época da vovó... É menina, mas nem todo mundo nasceu tão boa de espírito assim. Nessas sacaneadas os traumas podem vir à tona...

J: Ai, que papo de psicóloga. Daqui a pouco, ninguém vai ser espontâneo... Todos vamos pisar em ovos pra conversarmos... Ah, não. Que encheção de saco...

C: Tá certo, Jô! Só tô te dando o contraponto. Sem piadistas por perto, tudo acaba ficando meio sem graça mesmo. Mas afinal, que papo de maluca é esse? Você primeiro se questiona sobre o fato de as pessoas te acharem engraçada, que isso é postura masculina e que os cabras te rejeitam por você ser assim e, ainda por cima, depois vem em defesa do bom humor?!

J: hahaha... Eita menina! Não é que você é boa nessa arte de escutar amigas mesmo... Tô sendo a contradição em pessoa, hein. É essa TPM, viu. Não que eu queira banalizar esse estado feminino, mas como eu tenho a capacidade de ficar: carente, problemática, contraditória e doida nesse período. Afe!

C: Pode incluir as variações hormonais na sua lista de insatisfações quanto ao jeito feminino de ser, viu. Sem esquecer as cólicas menstruais dolorosas mensais, que o nosso organismo nos faz sentir. Parece que faz de propósito. Só pra não nos deixar esquecer que a gente possui ovário e que ele não foi fecundado naquele mês...

J: Ufa... A cólica de vez em quando é um alívio, né não?!

C: Oh, se é! Jô, tenho de ir.

J: Vou colocar um tênis e dar uma corridinha. Quem sabe a serotonina acaba apaziguando a progesterona e o estrógeno.

C: Faz isso. Tchauzim.

J: Obrigada, Clarita!

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Miopia


Fingi ter vista boa.

Tudo se embaçou.

Paguei o preço:

Tacharam-me de pedante.

Persisti no acerto:

Ver como Monet.



Aquilo que os olhos não veem

A mente acrescenta.

Se a curiosidade bate,

Caminha-se alguns passos,

De perto se vê.



Se continuar dando asas ao borrão,

Basta sentar e se deixar levar,

A sua verdade vai sendo construída.

Senão, cadê os seus óculos?