quinta-feira, 26 de abril de 2012

Paredes nascidas e despencadas

Estava presa em um lugar cheio de paredes. Elas cresciam conforme seus pensamentos transcorriam. Pareciam brotar feito planta. Uma sensação de tempo perdido.  E quanto mais pensava sobre as horas que se esvaiam e ela ali presa, mais as paredes se transformavam em labirinto. Foi se enraivecendo com vontade de parar de pensar. Todavia, os pensamentos a tomavam. Agora as paredes começaram a despencar golpeando o chão. Continuou a caminhada imersa na obsessão de deixar de pensar. Os pensamentos vinham em turbilhão. Amontoavam-se.  As paredes desenhavam percursos quadráticos no infinito. Quinas aos milhares. Ela deixou de dar passos por aqueles corredores inebriantes. Sentou no chão e principiou a cantarolar. Estratégia para não pensar. Em vão. Mesmo assim os pensamentos a consumiam. Desesperou-se. Levantou e começou a correr. Batia seu corpo contra as paredes, o que provocava nela uma dor aguda. Essa asfixia que a torturava na tentativa de deixar de pensar, não se equiparava à dor física. Intencionava esvaziar-se em pensamento, mas nada, não conseguia. Ouvia as paredes despencarem ensurdecedoramente. Desnorteou-se. Iniciou um soluçar sem fim. A tormenta foi transformada em calmaria pelo cansaço. Viu de forma clara, naquelas brechas de consciência que ocorrem em instantes raros: a prisão era a de dentro, não a de fora.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

T de toda tua

Tombaste no tango.
Troça fiz de teu estabaco.
Tu te fizeste de trouxa.
Eu me pus como tarântula a tropeçar em tua tez.
Torta e vinho tinto me ofereceste.
Tortilla, tacos e travessuras eu te ofertei.
Tramamos muitas tonterias por túneis translúcidos.
Construímos um telhado para alimentarmos tempos sem tique-taque.
A teia foi se tecendo em telecotecos pouco trabalhosos.
Em minhas tagarelices tresloucadas te puseste a rir.
Em teus tiques me pus a te admirar.
Todos os traços de nossos corpos foram tateados.
Nesta teimosia de nos atarmos
Persistimos transitando pelas tortuosas linhas desta travessia.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Personagens

Em sinapses, encontro todos eles.
Compõem-se passo ante passo.
Desembrulham-se em verbos,
Sentem em adjetivos,
Nomeiam-se em substantivos.

Ativam suas profundezas nos murmúrios do mostruário de memórias imaginadas.
São pedaços colhidos ali e aqui.
De vocês, de mim.
No cenário construído, vão se amoldando em ação.
Nos diálogos e nos silêncios, encontramo-nos nus.

Podem empanturrarem-se ao comer.
De fome, definharem.
Sofrerem na falta de amor compartilhado.
No desespero, alguns querem viajar sem volta.
Outros ficam e ralham.

São tímidos, desastrados, espalhafatosos.
São gotas que colorem o cinza dos dias.
Derramam seus catalizadores de cores, sentidos, formas sobre nós.
Cutucam-nos com provocações e questionamentos.

Desfazem-se em areia e se reconstroem em palacetes.
Trazem consigo a noz do que somos
E sabem que com eles não estaremos sós.

domingo, 8 de abril de 2012

Causo de menino

Sugou muitas frutas em cima da árvore do Nonato sem dizer palavra. Foi-se embora correndo com ares de novidade. Desembaraçou os cadarços do calçado para sujarem pelo caminho e poder tropeçar. Toda vez que pisava no cordão do tênis caia no chão e ria por minutos. Levantava e seguia em frente. Assim que chegou à Padoca, pediu um pão de sal e o pendurou na conta do padrasto. Perguntou ao Genival, que estava no caixa:

- Onde estão os cacos do vidro do prato que deixei cair outro dia e pedi que guardassem? Quero fazer lembrança.

Os clientes se entreolharam sem compreenderem o menino. Praticamente todos pensaram que o guri nasceu sem parafuso. Fazer lembrança de caco de vidro? Já o dono da padaria, em silêncio, foi até a cozinha, pegou um saco cheio de cacos coloridos e deu ao menino. O garoto agradeceu, amarrou os cadarços, porque não queria ter trabalho de juntar os pedaços de vidro se caísse e despejasse os caquinhos pelo chão. Pôs-se a correr o mais veloz que podia. Quando alcançou o córrego, viu os peixes nadarem na água transparente.  

O guri então tirou a roupa, pegou o saco estufado de cacos, uniu-os no fundo do riacho de modo a ilustrar uma serpente. Assim que concluiu o desenho, esperou anoitecer. A lua e o céu estrelado iluminavam o riacho e faziam com que a serpente de vidro brilhasse. No decorrer dos dias, a população do vilarejo vendo aquela imagem começou a desenvolver a lenda do riacho da serpente-diamante, que brilhava nas noites estreladas. A lenda correu os anos, os cacos de vidro em forma de serpente, com a correnteza, já tinham até se desmanchado no fundo do córrego. Mas a história persistia a povoar o imaginário popular.

Ali estava a lembrança construída pelo guri.

domingo, 1 de abril de 2012

Mentira que não dói se acomoda

Pobre da bichinha, tá tão magrinha.
Mimada e mimosa, ela sempre foi.
Agora deu pra carrancuda.
Deixou de estirar simplicidade.
Passou a saracotear por aí.
Cascudos, a menina tomou.
Mesmo assim, desenrolou-se.
Parou de ser anjo de candura, coração de rapadura.
Nublou-se pros olhos de quem não queria ver sua fantasia.
O ponteiro do tempo caminhou.
De miúda se pôs graúda.
Hoje cá ela está.
Nariguda, beiçuda, bochechuda, toda uda.
Cheia de infância e olhos carregados de histórias.